Violência de género em tempos de covid-19: um mal nunca vem só

Urge desenvolvermos mecanismos para a obtenção de dados sobre o impacto que esta realidade está a gerar na vida das mulheres, informando e incrementando as respostas actualmente instituídas, e antecipando estratégias de minimização dos efeitos.

Foto
Paulo Pimenta

Não pretendo adoptar um discurso que conflua para uma história única da emancipação das mulheres, mas a verdade é que as últimas décadas marcaram grandes avanços na luta pela igualdade de género. Porém, a chegada inesperada da covid-19 aproxima-nos de uma das realidades que mais contribuiu para retardar o percurso de libertação feminina: o confinamento ao espaço privado.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Não pretendo adoptar um discurso que conflua para uma história única da emancipação das mulheres, mas a verdade é que as últimas décadas marcaram grandes avanços na luta pela igualdade de género. Porém, a chegada inesperada da covid-19 aproxima-nos de uma das realidades que mais contribuiu para retardar o percurso de libertação feminina: o confinamento ao espaço privado.

Somos, assim, convidados/as a reflectir sobre como estarão, agora, a ser geridas as antecedentes sobrecargas por parte das mulheres nas tarefas domésticas e de cuidadoras, sabendo-se que, nestes tempos, tal se traduz numa maior exposição ao vírus. Por outro lado, também as situações de violência doméstica carecem, nesta realidade, de cerrada vigilância. A permanência no espaço doméstico, associada ao aumento de tensão, poderá ser o gatilho para novos casos de violência. E, apesar dos dados apresentados pela GNR indicarem uma diminuição das queixas em Março, relativamente ao Março de 2019, afigura-se perigoso basearmo-nos nestes indicadores e desvalorizar a complexidade por detrás da denúncia. O estado de emergência assume assim uma dupla perversidade: por um lado, o sentimento de menor vigilância e a percepção de menor risco de punição poderão conferir ao agressor uma sensação de maior espaço de manobra para a prática de violência sem consequências; e, por outro, os mesmos sentimentos mencionados tenderão a facilitar a ocorrência de episódios de violências mais severas e frequentes.

Estando actualmente a desenvolver uma investigação sobre respostas políticas e institucionais portuguesas à violência de género na intimidade, à luz da Convenção de Istambul — Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o combate à Violência Contra as Mulheres e à Violência Doméstica — só me cabe reiterar aqui o já reconhecido empenho na luta contra estas violências levado a cabo por Portugal que, perante esta nova realidade, adoptou e reforçou, com celeridade, as suas respostas.

Contudo, uma boa direcção não significa que o caminho esteja já trilhado e exemplo disso é que, mesmo em tempos de pandemia, continuam a ser as vítimas a abandonar as suas casas. Nada disto é justo, vivemos tempos de crise e devemos ter presente que todo o sistema de políticas públicas de combate e prevenção destas violências atravessam o maior teste de esforço a que se poderiam propor. Urge desenvolvermos mecanismos para a obtenção de dados sobre o impacto que esta realidade está a gerar na vida das mulheres, informando e incrementando as respostas actualmente instituídas e antecipando estratégias de minimização dos efeitos.

Em termos imediatos, vejo a protecção comunitária como uma importante aposta, mas que levanta incertezas sobre até que ponto a sociedade portuguesa está consciente de que entre marido e mulher tem a obrigação de meter a colher. E, olhando agora a questão por um prisma mais optimista, podemos também encarar esta fase como um momento de mudança e investirmos na sensibilização para a igualdade de género, nomeadamente desconstruindo masculinidades tóxicas que sobrecarregam mulheres e afastam os homens das tarefas domésticas e de cuidados que também lhes dizem respeito e que, em alguns casos, são de si afastados por pressões sociais que jogam com uma tradição de ridicularização dos que ponderam fazer o justo.

Não sabemos que rumos as coisas tomarão, mas será provável que no final deste confinamento estejamos em condições para melhor compreender não só os impactos que este vírus traz ao percurso emancipatório das mulheres, mas também o nível da responsabilidade e solidariedade colectiva em que nos encontramos.

Chegou Abril e consigo a brisa da liberdade e da resistência. Quem sabe se este diferente Abril não nos inspira a, enquanto sociedade, ir além do combate a esse vírus novo, resgatando vontades e forças para a luta contra outros velhos males.