Como a covid-19 mudou a nossa vida

Testemunho da professora Marília Favinha. “Todos sabemos que, se cedermos ao medo, não conseguimos preservar os princípios universais que nos fazem viver enquanto humanidade. E, assim, a sala de aula nunca fecha.”

Foto
rui gaudencio

Desde 1991 que sou professora e desde 1997 que o sou no Departamento de Pedagogia e Educação da Universidade de Évora. Provavelmente seria capaz de ser outra coisa, mas nunca fui, agora só sei ser professora.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Desde 1991 que sou professora e desde 1997 que o sou no Departamento de Pedagogia e Educação da Universidade de Évora. Provavelmente seria capaz de ser outra coisa, mas nunca fui, agora só sei ser professora.

Fui seguindo com muita atenção desde o início a evolução da covid-19. Da China, amigos de Macau enviam-me diariamente notícias da gravidade da situação. Mas nunca estamos preparados quando o problema nos atinge… É um pouco quando temos o primeiro filho, já ouvimos dezenas de relatos, já lemos dezenas de livros, mas quando nasce… não sabemos nada. E verdadeiramente nós sabemos relativamente pouco desta doença. Mas sabemos como mudou de forma inimaginável as nossas vidas. Nunca no meu melhor exercício de imaginação e fantasia podia chegar perto do que a covid-19 nos trouxe.

A nossa casa passou a ser três escritórios, ou melhor: dois escritórios e uma sala de aula. Eu, no meu quarto, o meu marido na sala e a minha filha de 17 anos, no quarto dela.

Semanalmente eu faço em média 900 quilómetros, nas deslocações entre Lisboa-Évora-Lisboa. Resido em Lisboa e trabalho em Évora. Dou aulas, faço formações de professores, sou perita externa de agrupamentos de escolas, investigo, escrevo artigos, desenvolvo trabalho enquanto directora de um curso de mestrado, oriento dissertações de mestrado, teses de doutoramento… um sem-fim de actividades.

A covid-19 mudou a minha realidade, como a de milhões de portugueses: agora é a partir de casa que tudo acontece. As aulas são agendadas no horário normal através da plataforma Colibri-Zoom. E dou por mim, de repente, em frente de mais de 20 futuras educadoras/professoras do 1.º ciclo do ensino básico, ou frente a mais de 20 futuros engenheiros mecatrónicos. Faço reuniões com São Tomé e Príncipe, com o Brasil através do Skype, falo com colegas através de WhatsApp, aumenta o número de emails.

O meu marido, militar há 33 anos, recebe uma chusma infernal de telefonemas. E fala, discute, planifica, tudo pelo telefone, mas não chega, vai ter de regressar à unidade onde presta serviço.

A minha filha, estudante do 12.º ano, faz os trabalhos que os professores pediram, estuda e, às vezes, ouço-a falar. “Disseste alguma coisa?”, grito do meu quarto. “Não, estou a falar com os meus amigos”, responde.

É frequente estarmos os três a falar ao mesmo tempo, em quartos diferentes, resolvendo questões de trabalho. Mas é difícil. Primeiro é difícil viver com a incerteza de um futuro que se nos mostra incerto, com a situação que o mundo vive, que a Europa vive, que Portugal vive. Mas também é muito difícil dar aulas sentadas frente a um computador, com os alunos a aparecerem em quadradinhos minúsculos. Volto ao início: só sei ser professora. E ser professora não é isto!

O professor só existe na acção, na relação directa, na interacção. A relação pedagógica exige estarmos em presença, obriga a uma constante observação, atenção e escuta do Outro. Obriga a acolher com o nosso olhar, com os nossos gestos, com as nossas palavras. Aprender é um processo que exige emoção, mas ensinar também.

Sempre soube que Sartre tinha razão, o Homem não pode sobreviver no quietismo. E então? Nesta circunstância temos de escolher a superação. Os nossos actos, enquanto professores, têm consequências, são capazes de fazer a diferença.

Então seguimos em frente, peço aos alunos que abram os microfones, que falem, que digam o que pensam. E encontro jovens preocupados, também eles cheios de incertezas, mas presentes. Querem aprender, querem saber, querem continuar, o seu futuro está em jogo. Eles têm consciência disso.

Todos sabemos que, se cedermos ao medo, não conseguimos preservar os princípios universais que nos fazem viver enquanto humanidade. E, assim, a sala de aula nunca fecha. Está sempre aberta: alunos, mestrandos, doutorandos telefonam, enviam mensagens pelo Messenger, chamam-me pelo WhatsApp, pelo Skype, no Zoom. E a sala de aula permanece aberta!

O futuro do Homem é o Homem, tal como dizia Francis Ponge.