Conselhos de um especialista em isolamento social desde 1991

Será muito importante que todos vós, que vos encontrais em desespero por não poderdes sair de casa, logo que volteis à liberdade, vos lembreis de nós.

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Rui Gaudêncio

Eu e muitas pessoas com deficiência vivemos em isolamento social há vários anos. No meu caso desde 1991. É com curiosidade que vejo o comportamento da maioria das pessoas ditas normais ao passarem pela mesma situação, mesmo sabendo que é um período passageiro. No meu caso é definitivo.

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Eu e muitas pessoas com deficiência vivemos em isolamento social há vários anos. No meu caso desde 1991. É com curiosidade que vejo o comportamento da maioria das pessoas ditas normais ao passarem pela mesma situação, mesmo sabendo que é um período passageiro. No meu caso é definitivo.

Pelo que presencio, uma grande parte está no limite e não suporta esta situação por muito tempo. Portam-se como se estivessem num túmulo, como se fosse uma tragédia. A tragédia maior não parece ser o vírus, mas sim o facto de se encontrarem confinadas a um espaço.

Talvez, a partir de agora, consigam imaginar o que nos obrigam a viver pelo facto de nascermos ou adquirirmos uma deficiência. É uma sentença que nos espera a todos. Uma pena que obrigatoriamente temos de cumprir. E não temos direito, e nem nunca teremos, a um espaço diário nos telejornais das TV, em que destacam os vossos grandes feitos realizados em casa. Sois tratados como heróis. Nós esquecidos. Também não tivemos, nem temos a solidariedade em cadeia dos vizinhos e muito menos das câmaras municipais, juntas de freguesia, etc.

Confesso que estranho ver tanta gente desesperada por ficar em casa. Muitos há anos que se queixam de falta de tempo para si e para os seus. Agora que têm todo o tempo do mundo reclamam sem parar.

Aceitam os conselhos de um veterano?

  • Ponham a conversa em dia. Eu não o podia fazer. Não havia telemóveis para esse fim, nem para realizar videochamadas. Havia telefones fixos para quem pudesse pagar a instalação e suportar o preço bem alto das chamadas. Era obrigado a ficar semanas sem falar com ninguém.
  • Jogos de consola ou no smartphone também não existiam. Mais uma diversão à vossa disposição.
  • Internet e computadores também estavam ao alcance de poucos. A maioria de vós tem essas ferramentas à disposição.
  • TV Cabo nem pensar. Só havia dois canais: RTP1 e RTP2. Só mais tarde surgiu a SIC e a TVI. Filmes só um por semana na RTP1, era às quartas-feiras no programa Lotação Esgotada. Iniciava-se geralmente às 21h e pouco. Era uma grande festa. O país parava. Hoje, todos têm ao dispor vários canais, filmes e séries sem fim. Porque não finalmente verem aquela lista de filmes e séries que sempre quiseram ver e nunca conseguiram?
  • Ler. Lembram-se dos livros, e não só, que se encontram à vossa espera na biblioteca? Como não havia ebooks, e não conseguia folhear os livros em papel, por falta de movimentos finos nas mãos, também não me era possível passar o tempo disponível a ler.
  • Estigma e indiferença. Passei a ser o “coitadinho” e aleijadinho” para quem a vida acabou. No vosso caso sois vistos como “heróis”. Pensai isso.
  • Muitos de nós nem em casa temos direito a ficar. Somos empurrados para lares. Aproveitem a vossa casa. Tenham prazer em viver nela. Lembram-se das vezes que se queixaram por não a poder desfrutar? Não a olhem como sendo um túmulo, mas sim o lugar que escolheram para viver. Aproveitem-na, melhorem-na, arrumem as gavetas, prateleiras, armários e aqueles espaços que há muitos anos dizem não ter tempo para arrumar. Ponham o sono em dia, ou, simplesmente, não façam nada.
  • Sempre sonhámos com a possibilidade de trabalhar a partir de casa. O Estado nunca nos criou condições para tal. A vós, sim.
  • Compras online com a facilidade actual, nem pensar. Mais um ponto a vosso favor.

Outra desvantagem é não conseguirmos ir sozinhos à janela interagir com os vizinhos, nem circular sem limitações por todos os espaços das nossas casas. Só o fazemos com o apoio de terceiros. Vocês são livres de o fazer.

Seria muito importante que todos vós que vos encontrais em desespero por não poderdes sair de casa, logo que volteis à liberdade, vos lembreis de nós, quem sempre o teve de fazer, e vai continuar a fazer, e nos ajudeis a libertar desta sentença imposta pelo Estado. Será que tereis essa capacidade e sereis nossos aliados na luta pela conquista da nossa autonomia e dignidade?

A todos que vos escondeis do inimigo desconhecido digo-vos que o nosso é castrador e está identificado há muito tempo – é o Estado. Vós brevemente passareis a ser livres, nós continuaremos confinados e limitados.

Neste momento sou muito mais livre, tenho emprego, veículo adaptado, assistência pessoal, vivo no lugar que escolhi, mas continuo a não poder ir e vir a muitos dos lugares que desejo, por falta de acessibilidades. E muitos dos meus amigos continuam a viver em lares de idosos sem possibilidades de fugir ao maldito vírus.

Às minhas assistentes pessoais Patrícia Gonçalves, Cláudia Grilate, Inês Mendes e Catarina Nicolau a minha gratidão por estoicamente continuarem a cumprir a sua missão, a quem continua a trabalhar para nos proteger e principalmente a quem se encontra infectado e quem se revê no que relatei, o meu abraço solidário.

Caso queiram conhecer mais pormenores sobre o meu isolamento social, conheçam um pouco da minha história no meu blogue Nós Tetraplégicos. E, por fim, todos vós haveis adoptado a frase “Vai ficar tudo bem”. Não acreditais? Acreditai, tem mesmo de ficar tudo bem.