Quarentena em Nova Iorque: “Há um antes e um depois da covid-19”
Cláudia Maia é natural do Porto e vive no coração de Nova Iorque há cinco anos. Da janela do seu apartamento, vê uma cidade diferente daquela que sempre conheceu: “Sem trânsito, sem turistas, praticamente deserta.” A trabalhar a partir de casa para uma instituição financeira, a gestora de 46 anos aguarda por melhores dias, longe da família. Um testemunho construído a partir de entrevista.
A partir do meu apartamento, na Rua 37, em Manhattan, sinto que uma estranha calma invadiu Nova Iorque. Vivo a poucos minutos a pé de Times Square há cinco anos e hoje posso afirmar que existe, claramente, um antes e um depois deste surto na cidade. Da minha janela, que está virada para uma das artérias principais de acesso a Manhattan, noto uma diminuição brutal do volume de tráfego e apercebo-me de que não se vê praticamente ninguém na rua. Eu estou fechada, sozinha no meu apartamento, desde 15 de Março, o dia em que foram impostas medidas de restrição na cidade.
Quando estalou a notícia de uma epidemia na Europa, ainda havia pouco eco do problema nos Estados Unidos. Recebi a visita de uns amigos portugueses que tinham estado em Itália no dia 29 de Fevereiro e foi assim que tive o primeiro contacto directo com a realidade da pandemia. Perguntaram-me se conseguiriam entrar nos Estados Unidos sem problemas, devido ao vírus, e a minha reacção foi de estupefacção. Claro que não haveria problema, respondi. E, efectivamente, não houve. Mas a empresa onde trabalho, que tem sede na Europa, exigiu que por ter estado com eles cumprisse um período de quarentena de 14 dias – desde então, passei a trabalhar a partir de casa. Nesse campo, business, as usual.
A situação agravou-se na Europa e começou a ser difícil ignorar o problema nos Estados Unidos. Só quando o Governo decidiu encerrar os voos com o exterior é que aqui se sentiu uma alteração de percepção relativamente à pandemia. O cepticismo do Presidente Trump, um homem muito pouco sensato, não ajudou a consciencializar a população para o problema e o número de infectados foi crescendo.
Por ora, ainda não senti um “aperto” no que toca à minha segurança ou no acesso a bens de consumo. Em Nova Iorque, as lojas e espaços de maior afluência fecharam. Embora se mantenham abertos os supermercados, eu nunca tive necessidade de ir às compras. Nova Iorque é uma cidade viciada em delivery – há anos que é assim. Por isso, muitos restaurantes mantêm-se em funcionamento, através de sistemas take-away ou de entrega. E eu, à semelhança do que já fazia no passado, continuo a comprar tudo online, através da Amazon Fresh. É prático: no mesmo dia entregam a minha encomenda em casa. Agora só consigo agendar entregas com atraso de três dias. Não parece haver rupturas nos stocks e continuo a ter acesso a produtos frescos sem dificuldades.
Para mim, enquanto expat, o que mudou? A ideia de estar longe da minha família, nesta altura, fez disparar a minha ansiedade. Os meus pais, que pertencem ao grupo de risco, vivem na região Norte de Portugal, onde há uma maior concentração de casos de infecção por covid-19. Perante esta realidade, o que fazer? Deveria (e poderia?) voar para Portugal? Ficaria presa em Nova Iorque?
Optei por permanecer cá. A minha mudança de casa para uma capital europeia está marcada para final de Junho, por isso abandonar antecipadamente implicaria desmontar a minha casa e expedir todos os meus bens para a Europa antes do tempo. No actual contexto, isso não seria simples e expor-me-ia ao contacto com mais pessoas. Um perigo maior para mim e para quem me recebesse em Portugal. Faria sentido?
Eu vivo fora do país desde 1997 e já estou acostumada a relacionar-me à distância. Consigo dar apoio emocional àqueles que me são próximos mesmo com um oceano a separar-nos. Os meus pais estão em isolamento e espero que consigam manter-se em segurança. Não excluo um regresso repentino, caso algo mau aconteça, embora esteja a evitá-lo. Sei que, racionalmente, faz mais sentido ficar cá, mas também sei que iria responder emocionalmente perante uma situação crítica. Tento viver um dia de cada vez e agir consoante a realidade que se me apresenta.
Apesar de estar confinada há precisamente um mês, para uma pessoa introvertida como eu isso não é aborrecido. Pelo contrário. Sempre me entreguei aos meus livros, às minhas séries, mais recentemente, à escrita. Nos primeiros dias, dediquei parte do meu tempo a fotografar um quadradinho da minha estante e escrever sobre as memórias que estão associadas aos objectos. Publiquei nas redes sociais e obtive feedback da minha rede. Hoje dou início a um jogo que anda a “varrer” as redes sociais, que se chama 30 Day Song-Challenge. Este tipo de actividades ajudam-me a manter-me ocupada, esperançosa, enquanto espero que tudo isto acalme.
E desde que me isolei, o meu telefone não pára de tocar. Creio que, em tão pouco tempo, nunca a minha rede de amigos esteve tão próxima. Não deixa de ser curioso que o afastamento físico nos aproxime das pessoas, mesmo que virtualmente. É como se se accionasse um processo de compensação. Videoconferências, chamadas telefónicas, mensagens, e-mails. Nunca pensei que iria socializar tão intensamente em quarentena.
Neste momento, Nova Iorque é o epicentro da pandemia. Há muita gente infectada. Mas a minha preocupação não é somente ser “apanhada” pelo vírus. A empresa onde trabalho garante-me um seguro de saúde completo, mas ir parar às urgências nesta fase seria dramático. Até cortar um dedo seria mau devido à sobrecarga dos serviços de saúde. E esse é um dos motivos por que prefiro manter-me em casa: quero proteger-me da mais pequena eventualidade.
Se no início equacionava a possibilidade de instalar-se um estado de violência e caos, hoje a perspectiva de que isso vá acontecer num futuro próximo é bem mais plausível. Não estou a falar de militarização das ruas ou implementação de sistemas de racionamento, não é a esse tipo de caos que me refiro. Preocupam-me, sim, o desemprego, a recessão económica e o desespero que muitas pessoas poderão vir a sentir – e que poderá dar origem, por exemplo, a um aumento da criminalidade. Poderá também abrir-se uma janela, quiçá, para o estalar de novos conflitos regionais e mundiais. O futuro dirá.
Apesar de tudo, mantenho a esperança de que o quotidiano da cidade regresse ao “novo normal” durante as próximas semanas. Caso contrário, nem eu poderei determinar onde estarei ou como serão os meus dias num futuro próximo. Conseguirei realizar a minha mudança de regresso à Europa, que estava planeada para Junho? Há que acreditar: vai correr tudo bem.