Covid-19, sob o olhar de um doente oncológico

Quão duro pode ser tudo isto quando se tem um cancro que mais do que nunca nos desperta para a necessidade de carinho, apoio e presença do outro?

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Rui Gaudencio

“Estou presa há muito tempo. Com esta nova limitação tudo se agrava.”
(B., 42 anos)

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“Estou presa há muito tempo. Com esta nova limitação tudo se agrava.”
(B., 42 anos)

Muito se tem falado da covid-19 e do quão desafiador se tem apresentado para o mundo atual. Mas, a verdade é que sendo inegável a universalidade do seu impacto, não são menos verdade as particularidades do mesmo.

Ultimamente, os doentes oncológicos que acompanho têm expressado a necessidade de falar sobre este tempo tão particular que estão a viver. Assim, achei que talvez este fosse o momento de parar, pensar e partilhar o que ele representa sob o olhar de um doente oncológico.

Um diagnóstico de cancro constitui um daqueles acontecimentos na vida que nos obrigam a redimensionar quem somos, que nos despe de carapaças e deixa a nu uma vulnerabilidade e finitude da qual teimamos fugir diariamente. A mente obedece quase em absoluto a uma lógica de sobrevivência, e bem menos de existência. As prioridades, metas e rotinas alteram-se profundamente. Tudo se estrutura no sentido de garantir a vida e buscar segurança e controlo num território de imprevisibilidade, com múltiplas trajetórias em aberto.

E eis que, a par de tudo isto, chega ainda, do nada, um tal de coronavírus que faz gritar internamente medos muitas vezes já tão difíceis de silenciar. São tantas as questões que a toda a hora atravessam a mente, deixando uma angústia sufocante a pairar: O que é isto de eu ser de risco? Risco como? Do quê? Quando? Em que situações? O que fazer? Imunidade comprometida, como assim? Até que ponto? Como me proteger mais? O que fazer diferente? Será suficiente? Em que posso estar a falhar? Irei escapar? Posso morrer?

Medo, medo, medo. O mais presente dos sentimentos, agora mais entranhado ainda.

O pensamento vigilante a toda a hora que não dá tréguas ao corpo e à mente.

E os afetos? Nós, ocidentais, naturalmente mais expansivos, mais da proximidade e do toque, estamos agora expostos a duras barreiras invisíveis. Mas, o quão duro pode ser tudo isto quando se tem um cancro que mais do que nunca nos desperta para a necessidade de carinho, apoio e presença do outro? O abraço e toque afetuoso de um profissional que cuida, um sorriso franco sem máscaras cirúrgicas… Mas, sobretudo um beijo ou abraço de um filho ou companheiro de vida, de um pai, mãe ou amigo. Uma visita a casa para um lanche, escape e conversa sobre a vida. Uma companhia, antídoto para muito sofrimento físico e emocional, num internamento, num dia de exames ou de tratamentos. Uma saída ou passeio planeado sem riscos para dar sentido à luta e para reparar as energias tão precisas. Como conviver com a ideia de que de repente nada disto é possível?

Como coisas tão simples, dadas como certas, às vezes até entendidas como pouco aliciantes, se mostram agora alvo de saudade, de perda, de ânsia. O beijo que não pode ser recebido, a visita que não pode ser feita, o passeio que não pode ser dado, o novo tratamento cá ou fora do país que será reequacionado, a consulta, exame ou tratamento que poderá ter de ser feito na ausência de um acompanhante/familiar. Alguém que nos ama ser um risco para nós ou nós para esse alguém.

“Como me sinto pequenina, frágil.”

Palavra alguma espelha a dimensão do que se vive internamente. Só o doente a conhece. Este é apenas um convite à reflexão e à ação. Uma tentativa de dizer: “Penso em ti, em como estará a ser duro viver tudo isto nesta fase da tua vida.”

Numa tentativa de amortecer todo este impacto, é para nós fulcral sublinhar que uma comunicação aberta e de proximidade com a família, amigos e profissionais de saúde que sempre o acompanharam pode ser essencial para preservar um sentimento de segurança e conforto, mesmo que, esta presença seja menos física.

Estamos todos, os profissionais — médico assistente, enfermeiros, psicólogo, psiquiatra — à distância de uma chamada ou, nos dias que correm, de uma videochamada, teleconsulta ou atendimento através das linhas de apoio. Estamos disponíveis para o apoiar, esclarecer dúvidas e manter um acompanhamento próximo, de modo a encurtar o distanciamento físico e a reforçar a relação de confiança e segurança estabelecida entre todos os doentes e profissionais de saúde.

Apesar das dificuldades que possa passar neste momento, a verdade é que, muitas vezes, o doente oncológico caminha em direção à descoberta pessoal de uma nova forma de se relacionar com o tempo, de perceber o que realmente importa, de estar mais capaz de usufruir do presente que nunca.

Espero sinceramente que, no momento, estas novas descobertas possam ajudar.