Telescola na RTP Memória: um duplo anacronismo
Embora a Telescola possa servir para manter os alunos ocupados, são poucas as evidências de que esse formato possa contribuir para um entendimento pleno dos conteúdos apresentados.
A Telescola vai voltar depois das férias da Páscoa, abrangendo todos os alunos até ao 9.º ano de escolaridade. Trata-se de uma medida complementar que não substitui o ensino à distância que tem vindo ser feito com recurso a plataformas digitais. Num quadro em que nem todos os alunos reuniam as condições para aceder e utilizar tais plataformas, esta foi a solução adoptada pelo Governo para garantir o acesso generalizado aos conteúdos educativos do terceiro período. Ainda não é claro como é que a Telescola vai funcionar. Porém, dado que o modelo foi já adoptado nos anos 60-80, não é possível não nos questionarmos se tal não se trata de um downgrade e um retorno a métodos anacrónicos. Há pelo menos um aspecto que reforça esta preocupação: o canal escolhido para passar a Telescola foi a RTP Memória.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A Telescola vai voltar depois das férias da Páscoa, abrangendo todos os alunos até ao 9.º ano de escolaridade. Trata-se de uma medida complementar que não substitui o ensino à distância que tem vindo ser feito com recurso a plataformas digitais. Num quadro em que nem todos os alunos reuniam as condições para aceder e utilizar tais plataformas, esta foi a solução adoptada pelo Governo para garantir o acesso generalizado aos conteúdos educativos do terceiro período. Ainda não é claro como é que a Telescola vai funcionar. Porém, dado que o modelo foi já adoptado nos anos 60-80, não é possível não nos questionarmos se tal não se trata de um downgrade e um retorno a métodos anacrónicos. Há pelo menos um aspecto que reforça esta preocupação: o canal escolhido para passar a Telescola foi a RTP Memória.
É claro que essa escolha estava desde logo limitada aos canais públicos com transmissão TDT, mas podia ter sido utilizada, por exemplo, a RTP 3, que é já de si um canal de informação. Embora possa parecer um pormenor, tal é significativo, pelo menos do ponto de vista sociológico, pois parece revelar um duplo anacronismo. Por um lado, um anacronismo evidenciado por uma assincronia histórica: uma Telescola que existiu entre 1965 e 1987, recuperada em plena era digital através de um canal que é uma memória desses tempos. Por outro lado, um anacronismo assente numa assincronia relacional: quando a lógica digital é a da sincronia multicanal, interactiva e personalizada, adopta-se um canal único, unidireccional e universal. Nem sequer há a possibilidade de se recorrer ao time shift. E quando o reforço entre ambos anacronismos é tido em consideração, é impossível não pormos em causa esta medida e o seu objectivo.
Ainda que a Telescola seja apresentada como uma medida complementar para garantir o acesso universal ao ensino, a verdade é que a mesma configura uma solução “one size fits all” que se opõe às soluções de ensino diferenciado que se têm vindo a adoptar. E esse tipo de solução não combate as desigualdades de acesso ao ensino, pelo contrário: ao não ter em conta dificuldades específicas, agrava a diferença entre aqueles que têm literacia e possibilidade de usar múltiplos canais, daqueles que não têm. É interessante notar que o Governo tem alegado fundamentar as suas decisões em relação a esta crise com o coronavírus na evidência científica, mas nenhum estudo sociológico foi apresentado para sustentar esta medida. Parece que a única evidência que conta afinal é a das ciências ditas exactas, tendo as ciências sociais ficado completamente de fora desta governação.
Há diversos estudos que põem em causa a eficácia deste formato/método. Alguns dos problemas identificados prendem-se com a dificuldade desse tipo de emissões em envolver os alunos, independentemente da sua qualidade. Na maioria das vezes, verificou-se que o acompanhamento destas sessões era feito apenas por um grupo restrito de alunos, mas mesmo esses eram susceptíveis a ser rapidamente alheados por outras actividades do dia-a-dia. Acresce a dependência dos professores aos programas escolares, que se pode traduzir num enfoque excessivo dos conteúdos das emissões nos respectivos manuais. Para além disso, o carácter unidireccional de um ensino sustentado, sobretudo, num processo de exploração de conteúdos veiculados a textos de apoio, é geralmente prejudicado pela falta de uma cultura de leitura que é transversal às gerações actuais.
Muitos outros exemplos poderiam ser dados, mas o ponto é que, embora a Telescola possa servir para manter os alunos ocupados, são poucas as evidências de que esse formato possa contribuir para um entendimento pleno dos conteúdos apresentados. Uma solução universal alternativa poderia passar pelo recurso da rádio, não segundo uma lógica de broadcast, mas de podcast. Ao contrário da Telescola, há já evidências que apontam um elevado grau de adesão aos podcasts aplicados ao ensino, configurando um formato mais em linha com o vocabulário e as práticas digitais da geração actual. Há até algumas experiências já promovidas pelo Ministério da Educação, como o projecto “Conta-nos uma história!”. No quadro do duplo anacronismo de que já se falou, estas alternativas deveriam ser equacionadas, ou de outra forma corre-se o risco de se transformar o estudo à distância numa rotina monótona que pode, inclusive, inibir os esforços pessoais para a construção de abordagens diferenciadas.