Europa: ser ou não ser (II) – oportunidades
Serão estes Estados e os cidadãos mais desfavorecidos que estarão mais desiludidos amanhã e que assinarão a sentença de morte da União Europeia.
São essencialmente duas as formas de lidar com a pandemia a nível europeu. A primeira, que parece prevalecer neste momento, é aquela em que cada Estado procura olhar para os seus próprios interesses a curto prazo, sem contar com a ajuda dos seus vizinhos, mas tentando aprender com as suas experiências. Neste modelo, cada país enfrenta sozinho os dilemas morais e políticos de limitar mais rápida ou severamente os contactos interpessoais para conter ao máximo a expansão da pandemia e de abrandar a atividade económica, com os custos humanos que resultarão desta opção.
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São essencialmente duas as formas de lidar com a pandemia a nível europeu. A primeira, que parece prevalecer neste momento, é aquela em que cada Estado procura olhar para os seus próprios interesses a curto prazo, sem contar com a ajuda dos seus vizinhos, mas tentando aprender com as suas experiências. Neste modelo, cada país enfrenta sozinho os dilemas morais e políticos de limitar mais rápida ou severamente os contactos interpessoais para conter ao máximo a expansão da pandemia e de abrandar a atividade económica, com os custos humanos que resultarão desta opção.
A outra abordagem consiste em compreender que, tanto no que diz respeito à gestão da crise de saúde pública quanto à da crise económica que certamente se seguirá, a principal obrigação moral de cada país não pode limitar-se aos cidadãos nacionais, mas antes deve estender-se aos cidadãos europeus, num destino que se espera comum. Esta segunda opção exige que os custos da crise sejam partilhados, requer um esforço muito maior para coordenar as respostas à crise sanitária e sobretudo para resistir à tentação de atribuir responsabilidades pela crise, pela sua gestão e pela capacidade de responder aos seus efeitos.
É, portanto, necessário lembrar aos líderes das instituições europeias, mas também aos chefes de Estado e de Governo dos Estados europeus, que é necessário ajudar os cidadãos europeus a desenvolver uma relação de pertença à União Europeia, cuja legitimidade democrática é menos direta, que não fala a língua materna da maioria dos europeus e que é composta por povos muito distantes, geograficamente, culturalmente e historicamente. E é necessário que os líderes europeus entendam que será difícil alcançar estes objetivos se — perante uma crise comum que ameaça bens tão primários como a própria vida e que deriva de um fator tão aleatório como a propagação global de um vírus proveniente da China — centrarem o debate mais no que nos torna diferentes do que no que nos une e se não considerarem seriamente a necessidade de coletivizar os danos resultantes da pandemia que, evidentemente, afeta de forma mais violenta os mais desfavorecidos. Serão sem dúvida estes Estados e os cidadãos mais desfavorecidos que estarão mais desiludidos amanhã e que assinarão a sentença de morte da União Europeia. Em detrimento de todos.
Neste sentido, será necessário assegurar que a solidariedade da União Europeia seja exercida de forma a garantir a inclusão dos mais fracos e vulneráveis, dos mais violentamente afetados por esta crise, a fim de evitar que os recursos disponibilizados através dos significativos — e, por enquanto, ainda hipotéticos — meios financeiros que estão em cima da mesa beneficiem grupos de pessoas que já são privilegiadas.
Se, de facto, estes recursos fossem gastos esquecendo o impacto diversificado da pandemia e as reações à própria pandemia, acabar-se-ia não só por violar um princípio fundamental do constitucionalismo moderno, o da igualdade, e por criar efeitos moralmente inaceitáveis, mas também por aumentar a distância percebida entre a União, os governos nacionais e os povos europeus, cimentando ainda mais o caminho de uma Europa “para as elites”.
Desempregados, migrantes, prisioneiros, mulheres, crianças, provavelmente até LGBTI, são todos, neste momento, chamados a fazer sacrifícios que parecem maiores, e mais intensos, do que aqueles para quem um lar e trabalho seguro, cidadania europeia e liberdade, por mais limitados que sejam pelas medidas de emergência sanitária, não estão em questão.
As revoltas, imediatamente reprimidas, que irromperam em algumas prisões, os constantes apelos à proteção das mulheres, contra as quais há receios de um ressurgimento da violência doméstica, os gritos de ajuda de empregadas domésticas e de cuidadoras, de trabalhadores agrícolas, de pessoas que ficaram desempregadas por força da pandemia e de sem-abrigo não podem ser esquecidos no plano de reconstrução que a União, para existir, terá de pôr em prática.
Neste plano, a recente decisão do Governo português de regularizar a permanência em território nacional de estrangeiros com processos pendentes no SEF à data da declaração do estado de emergência, permitindo o acesso destas pessoas ao Serviço Nacional de Saúde e a outros apoios sociais, é exemplo de uma medida inclusiva e de humanidade.
Mas o que é essencial salientar é que, na realidade, existe um dever moral para com cada pessoa, e não apenas para com os europeus. Deste ponto de vista, também, é ainda mais necessário que a Europa saia mais forte desta crise. Os Estados Unidos não estão em posição de exercer a função de liderança global de outrora: com eleições à vista, vítimas da polarização brutal da sociedade americana e de um presidente caprichoso e imprevisível que evidencia uma gestão desastrosa da pandemia, não podem sequer fingir coordenar uma resposta global.
Perante este cenário, a China — paradoxalmente, o Estado em que teve origem a pandemia e que terá ocultado dados sobre a mesma — foi o primeiro país a estender a mão a Itália ao enviar máscaras, por sua iniciativa, com um gesto diplomático que de ingénuo nada tem. Por tudo isto, uma postura verdadeiramente coordenada e solidária à escala europeia pode não só evitar que a pandemia cause milhares de vítimas adicionais, mas também salvar o modelo político mais justo da história da humanidade e o verdadeiro orgulho europeu: o Estado de direito democrático e social forjado desde a Segunda Guerra. Para tanto, é necessário, a um tempo, ser firme e inequívoco na rejeição de modelos autoritários ou quase-autoritários como aqueles que já se formalizaram na Hungria de Orbán e que se encontram em consolidação na Polónia do PiS.
A outro tempo, é essencial alargar o círculo daqueles que se consideram parte de um destino comum em toda a Europa e fazê-lo dando prioridade às necessidades daqueles que são mais vulneráveis. Só assim a Europa estará em condições de estender a mão ao resto do mundo, como é seu dever, e de exercer a liderança que reflete o compromisso com os seus valores fundamentais e que honra a sua história.
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico