A nossa casa comum
O verdadeiro desafio hoje é fazer desta crise uma oportunidade de transformação individual e coletiva, assumindo a nossa vulnerabilidade e a nossa condição integrante de um planeta comprometido pela ecologia, pela saúde e pela paz.
A epidemia de covid-19 é uma imensa tragédia de saúde pública cuja magnitude se refletirá na economia e na sociedade de forma ainda imprevisível. No meio desta tormenta global, todos desejamos que seja rapidamente encontrada uma vacina, e que se desenvolvam as soluções terapêuticas para mitigar o seu impacto imediato.
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A epidemia de covid-19 é uma imensa tragédia de saúde pública cuja magnitude se refletirá na economia e na sociedade de forma ainda imprevisível. No meio desta tormenta global, todos desejamos que seja rapidamente encontrada uma vacina, e que se desenvolvam as soluções terapêuticas para mitigar o seu impacto imediato.
Mas importa perspetivar para além do contributo da ciência e da tecnologia. Não sendo possível antecipar todas as consequências desta pandemia, vale a pena refletir sobre o que ela nos ensina em relação a nós próprios, em especial no que evidencia da nossa profunda vulnerabilidade, da nossa condição frágil que preferimos esquecer. A verdade é que o nosso estilo de vida e toda a organização económica está alicerçada na convicção de um poder absoluto, como se fosse possível vencer as limitações do próprio corpo e existir para além da nossa condição mortal. Para cumprir este propósito, ajuda uma conveniente desmaterialização da existência, alienando-a da dependência inerente à sua condição biológica e ambiental.
Mas a consciência da nossa vulnerabilidade é fundamental para compreendermos e cuidarmos das relações de dependência uns dos outros. Sermos conscientes dos nossos limites e da nossa interdependência torna-nos mais disponíveis para o outro e apela à nossa responsabilidade pelo mundo em que vivemos. Quando nada nos afeta, quando nos julgamos invulneráveis, é mais fácil atuar de forma irresponsável. A crise que vivemos pode ser a oportunidade para adotarmos uma outra responsabilidade, impulsionando a necessária transformação sistémica dos modos de produção, das práticas de consumo, das relações comerciais, dos comportamentos sociais e estilos de vida, enfim, da transição para um outro modelo de desenvolvimento e uma nova organização social saudável e ajustada aos limites do planeta. Julgo que estamos hoje mais preparados e mais disponíveis para esta transição, no que deve ser um desígnio convergente e estimulante para todas as sociedades do mundo.
Não há dúvida que a pandemia que vivemos realça o excesso e a irracionalidade do nosso sistema de produção e de consumo, expondo uma evidente convergência de crises ecológica e de saúde. Constatamos que os novos vírus são geralmente de origem animal porque, ao destruirmos os ecossistemas e ocuparmos o habitat dos animais selvagens, forçámos a sua aproximação às comunidades humanas. Por outro lado, numa economia aberta e global, os vírus circulam e não se controlam os efeitos de múltiplos intercâmbios. Somos vítimas de um sistema económico que se foi afirmando numa crescente cegueira perante os limites planetários, e que nada faz perante as consequências para a saúde da obsessão pelo lucro.
O modelo de desenvolvimento em que assenta toda a atividade económica gera riscos colossais para a saúde e tremendos impactos sociais e ambientais, ao mesmo tempo que alimenta uma desigualdade que se tornou insustentável. É imperioso conseguir fazer diferente; a proteção dos mais vulneráveis, a educação, a agricultura, o uso de recursos naturais, não podem ficar subordinados ao ditame do máximo proveito. Esta pandemia pode ser uma oportunidade para refletirmos sobre uma transição gradual, adaptada, que não responde apenas ao desafio das alterações climáticas, mas representa um projeto firme de construção civilizacional.
O verdadeiro desafio hoje é fazer desta crise uma oportunidade de transformação individual e coletiva, assumindo a nossa vulnerabilidade e a nossa condição integrante de um planeta comprometido pela ecologia, pela saúde e pela paz; um mundo maior do que nós mesmos, assente na cumplicidade, na diversidade e na cooperação, capaz de acolher e de cuidar a pluralidade das formas de vida. Não se trata de restaurar e regressar a uma condição prévia, mas sim de propor alternativas pelo bem universal, com criatividade e cooperação, apoiando a transição para as atividades de baixo carbono e resilientes ao clima, impulsionadas por investimentos justos, capacitação, conhecimento, e abraçando a sabedoria do mundo que é afinal uma casa comum.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico