45 vítimas da legionella já assinaram acordos para receber 8 mil euros
Processo está “parado” em tribunal e vítimas do surto de 2014 sentem-se esquecidas e “discriminadas” pelo Estado. Legionella colocou-as no grupo de maior risco da pandemia.
Os acordos de compensação propostos pelas empresas envolvidas já foram aceites por 45 das 73 vítimas do surto de legionella de Vila Franca de Xira reconhecidas na acusação deduzida há 3 anos pelo Ministério Público (MP). De fora das negociações mantêm-se outras 330 pessoas igualmente infectadas pela bactéria da legionella, cuja relação com a estirpe detectada numa torre de refrigeração da ADP-Fertilizantes não foi confirmada. Pelo meio, o processo-crime está de certo modo “parado” no Tribunal de Loures e a associação representativa sente que as vítimas deste surto, ocorrido já há cinco anos e meio, têm sido “esquecidas” e “discriminadas” pelo Estado português.
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Os acordos de compensação propostos pelas empresas envolvidas já foram aceites por 45 das 73 vítimas do surto de legionella de Vila Franca de Xira reconhecidas na acusação deduzida há 3 anos pelo Ministério Público (MP). De fora das negociações mantêm-se outras 330 pessoas igualmente infectadas pela bactéria da legionella, cuja relação com a estirpe detectada numa torre de refrigeração da ADP-Fertilizantes não foi confirmada. Pelo meio, o processo-crime está de certo modo “parado” no Tribunal de Loures e a associação representativa sente que as vítimas deste surto, ocorrido já há cinco anos e meio, têm sido “esquecidas” e “discriminadas” pelo Estado português.
A pandemia de covid-19 veio complicar ainda mais a vida de perto de 400 das vítimas do surto de Novembro de 2014. Dos 403 infectados identificados pela Direcção-Geral de Saúde, catorze acabaram por falecer e a maioria dos restantes ficou com sequelas respiratórias graves. Sofreram pneumonias causadas pela bactéria da legionella e a sua vida e sua saúde nunca mais foram as mesmas. Agora, com a pandemia de covid-19, são um dos grupos de maior risco.
Mas, mais uma vez, o problema das vítimas do surto de Vila Franca de Xira parece esquecido. O Estado português, ao contrário do que fez em casos posteriores como os incêndios de Pedrogão e a derrocada de Borba, nunca deu qualquer tipo de apoio às 403 vítimas. A justiça também se tem revelado muito lenta e o processo-crime instaurado há cinco anos e meio está ainda numa fase inicial da instrução. A juíza responsável suspendeu a tramitação da instrução em Novembro passado, logo após a audição da primeira testemunha, alegando que importava aguardar pelo desenvolvimento das negociações entre as duas empresas acusadas (ADP e GE Power Control) e as vítimas para eventuais indemnizações e desistências de queixas. Na altura ficou previsto que essa suspensão vigoraria até Janeiro, mas, segundo Ana Severino, advogada que representa a Associação das Vítimas da Legionella de Vila Franca de Xira (AVLVFX), não constam do processo mais diligências para além da aceitação da comunicação de acordos de compensação com algumas das vítimas.
“Muitos já aderiram a esses acordos. Os valores são confidenciais e variam consoante a situação das pessoas”, explicou Ana Severino ao PÚBLICO, admitindo que a pandemia do covid-19 também levou mais algumas pessoas a aceitarem estas compensações e a desistirem de ficar à espera das decisões finais da justiça, que ainda podem demorar muitos anos. O PÚBLICO sabe que o último valor base proposto pelas duas empresas ronda os 8050 euros. Mas a proposta abrange apenas as 73 pessoas citadas na acusação, em que o MP considera que as análises efectuadas confirmam que foram infectadas pela mesma estirpe da legionella encontrada numa das torres de refrigeração da ADP, que nesse período de 2014 foi objecto de uma acção de desinfecção feita por técnicos da GE Power Control, empresa que terá adoptado posteriormente a designação de Suez II. As restantes 330 vítimas foram “excluídas”, porque não lhes foram feitas análises nesse sentido ou revelaram estirpes diferentes. A AVLVFX nunca se conformou com esta exclusão e tem tentado recorrer para as mais variadas instâncias.
“Pelo que sabemos, a instrução ainda está numa fase de perceber quantas pessoas desistem da queixa. Os últimos despachos têm sido de aceitação de desistências. Não tenho indicação de mais desenvolvimentos”, acrescenta Ana Severino, que também representou individualmente cinco das vítimas, que acabaram todas por aderir aos acordos, sobretudo pela incerteza e pela demora da justiça. “Procurei dar a informação toda aos meus clientes. Disse-lhes que achava que o processo ia demorar, que não temos certezas e eles, depois, decidiram. No caso de clientes meus que tinham apoio judiciário, eu não desistiria. No caso dos que não tinham apoio judiciário, é diferente. Se perdessem a acção em tribunal, teriam, depois, que pagar as custas e os gastos seriam cada vez maiores”, observou a causídica alverquense, lamentando a forma como o Estado tem ignorado ao longo dos anos estas 403 pessoas e famílias.
“As pessoas perderam muita da sua saúde, perderam qualidade de vida, perderam expectativas de vida e o Estado nunca lhes deu grande apoio. Foi só aprovado o pedido de isenção das taxas moderadoras. As pessoas têm que pagar tudo, consultas, tratamentos, medicamentos, é tudo caríssimo. Sentem que foram completamente ignoradas”, constata Ana Severino.
“Estamos no grupo de maior risco”
Nuno Silva tem o mesmo sentimento, tanto mais porque foi uma das vítimas do surto de legionella, esteve 10 dias em coma e viu seriamente agravadas as suas condições de saúde, com enfisemas pulmonares que lhe limitam muito a vida do dia-a-dia. Há dois anos à frente da Associação de Vítimas da Legionella de Vila Franca de Xira, Nuno Silva percebeu que tem que tomar as máximas cautelas com a pandemia de covid-19. Tal como muitos portugueses, não pode exercer a sua actividade profissional na venda de produtos para gabinetes de estética, que estão hoje totalmente fechados.
“Estamos no grupo de maior risco. Ficámos quase todos com sequelas graves a nível respiratório. A legionella agravou os riscos a que estamos sujeitos. E a pandemia só veio agravar a situação de saúde destas pessoas, que já era má”, sublinha Nuno Silva, em declarações ao PÚBLICO, lamentando a forma como o Estado português nunca assumiu as suas responsabilidades no caso do surto de 2014, porque “falhou” na legislação e fiscalização das unidades industriais e, depois, na forma como foi promovida a investigação, que deixou 330 das vítimas sem explicação para o que lhes sucedeu.
“Acabámos sempre por ficar para trás. Ou há-de ser isto ou há-de ser aquilo. Para nós nunca houve nenhum tipo de apoio, nem nunca nos deram uma palavra, uma justificação”, lamenta Nuno Silva, lembrando que a AVLVFX escreveu ao Presidente da República, ao Governo e aos grupos parlamentares, mas praticamente não teve respostas. “Nós tentámos contactar, mesmo a nível do Presidente da República nem sabemos se leu o que escrevemos, porque recebemos apenas uma resposta dos serviços a dizer que o assunto tinha sido encaminhado para o Governo. Se não formos nós a tentar fazer alguma coisa, somos sempre esquecidos”, constata Nuno Silva, vincando que muitas das vítimas atravessam grandes dificuldades, porque deixaram de poder exercer a sua actividade profissional e têm encargos muitos maiores com a sua saúde.
Também por isso, alguns acabaram por se convencer a aceitar o acordo de desistência da queixa proposto pela ADP e pela GE. “Segundo temos conhecimento, até meados de Março eram cerca de 45 pessoas que já tinham feito o acordo. Não eram nem de perto nem de longe os 73. Não sei se com o problema do covid-19 houve mais pessoas a aderir. Com esta incerteza toda, pode ter havido mais alguma pessoa a aceitar”, admite Nuno Silva, que também julga que o processo está “praticamente parado” no Tribunal de Loures, cinco anos e meio depois do surto e três anos depois da dedução da acusação (Março de 2017).
O PÚBLICO procurou, também, obter mais esclarecimentos junto dos advogados das duas empresas – para além da ADP e da GE, o MP acusou sete funcionários destas firmas. “Neste momento, as defesas entendem que não é oportuno prestar quaisquer declarações”, disse, ao PÚBLICO, Pedro Duro, advogado que representa a ADP-Fertilizantes neste processo.
Acção popular tem novas adesões
No passado mês de Novembro, cinco anos depois daquele que terá sido o terceiro maior surto mundial de legionella, a AVLVFX entregou uma acção popular no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa que reclama do Estado português indemnizações individuais de 8050 euros para cada uma das 330 vítimas em que não foi identificada a estirpe da bactéria da legionella contaminante. Na acção, apresentada contra o Estado e contra os ministérios da Saúde e do Ambiente, a AVLVFX contesta especialmente a actuação da Direcção-Geral de Saúde (DGS) e do Ministério Público (MP), considerando que foram cometidas várias falhas no acompanhamento e na investigação do caso e que não foram cumpridos os princípios de equidade previstos na Constituição Portuguesa. Se o TACL vier a dar provimento à acção popular, o Estado poderá ter que pagar mais de 2, 65 milhões de euros a estas 330 vítimas.
Segundo Nuno Silva, a última assembleia-geral da AVLVFX, realizada a 29 de Fevereiro, teve uma adesão muito significativa e houve várias pessoas que se filiaram na associação, com o objectivo de aderirem também a esta acção popular. “Vamos esperar pelos resultados desta acção popular. Se não houver nenhum resultado em Portugal, a nossa intenção será recorrer, depois, ao Tribunal Europeu”, garante o presidente da AVLVFX, que já contactou juristas especializados nestas situações. Mas Nuno Silva sabe que a acção popular pode demorar três ou quatro anos nos tribunais portugueses e que o recurso para o Tribunal Europeu pode representar mais três ou quatro anos. “E entretanto as pessoas vão desaparecendo”, lamenta, insistindo que o Estado português devia olhar para estas pessoas de outra maneira.
O mesmo sentimento tem Ana Severino, vincando que a AVLVFX também tem poucos meios para avançar na justiça. “Não se entende por que é o relatório da investigação demorou tanto tempo a chegar ao processo. As coisas chegaram tarde ao processo e isso também veio atrasar a reacção das pessoas. Depois, as notificações foram mal feitas, a concessão de apoio judiciário foi terrível e o processo ficou parado. O Estado devia ter apoiado estas vítimas e poderia fazê-lo”, conclui.