Saiu de uma tribo isolada na Amazónia para encontrar um mundo inteiro em isolamento

Depois de passar cerca de um mês incontactável para fotografar uma tribo indígena isolada na Amazónia, o fotojornalista Paulo Múmia foi surpreendido na viagem de regresso ao Rio de Janeiro com um mundo virado do avesso por causa da pandemia de covid-19. “Saí do isolamento para ficar mais isolado ainda”, confessa. “Isolado e triste.”

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Paulo Múmia é um fotojornalista carioca Juliana Lins

A viagem já ia longa. O fotojornalista brasileiro Paulo Múmia entrara no barco ainda antes de o sol nascer e vira o dia desenrolar-se lentamente ao longo do rio Purus, bem no seio da Amazónia. Sempre no mesmo banco de alumínio, à procura de posição, a tentar descansar. Na cabeça, quem deixara para trás, há dois dias: os suruwahas, tribo indígena que vive, isolada, no Sul da Amazónia, a mais de 700 quilómetros de Manaus, com quem passara as últimas semanas, incontactável, em trabalho para UNESCO e Museu do Índio. E o que aí vinha: a chegada a casa no Rio de Janeiro, à família, o “chope” com os amigos para contar tudo o que vira, o merecido repouso.

Já era noite, umas 19h do dia 23 de Março, quando por fim alcançaram Canutama. A “voadeira” encostou num posto flutuante e os passageiros prepararam-se para o desembarque, já a sonhar com a noite bem dormida num hotel. Até que, recorda o carioca de 44 anos, o mundo ficou do avesso. “Desculpem”, interrompeu o funcionário, “mas vocês não podem desembarcar”. Começaram as perguntas, enquanto a Polícia Federal era chamada ao local. “Como assim?...”

Já no posto da polícia, para onde o barco fora levado, Paulo Múmia, um antropólogo, uma bióloga, um funcionário da Funai Fundação Nacional do Índio e o próprio piloto foram recebidos por uma equipa médica. E “começou uma história bem esquisita”. “Não podem desembarcar porque a cidade está em quarentena”, disse o agente. “Quarentena de quê? Malária?”, perguntaram os visitantes. “Não, coronavírus.” E o mesmo aviso de cada vez que alguém se aproximava: “Mantém a distância, se afasta”, repetia o polícia, a mão no coldre da arma, a estupefacção a inundar a sala. “O que é isto? Mantém a distância? O que está a acontecer no mundo?”, questionava-se o fotojornalista, exasperado.

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O fotojornalista ainda não pode revelar imagens dos suruwaha Paulo Múmia
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Apenas pode apresentar alguns pormenores Paulo Múmia

A resposta chegou num telefonema à mulher, que, ao fim de um mês sem notícias do marido, lhe deu um resumo apressado do que era a covid-19 que estava a correr o mundo. E o aconselhou: “Fica aí, é mais seguro, volta para a aldeia.” Os polícias ajudaram depois a compor o cenário. “Nunca pensei que fosse descobrir no meio do rio Purus que o mundo tinha entrado num colapso total de doença e pandemia”, diz Paulo Múmia, em conversa com o PÚBLICO a partir de sua casa no Rio de Janeiro, onde está em confinamento, como mandam as regras de combate à pandemia que já matou mais de 110 mil pessoas e infectou mais de 1,7 milhões. “Saí do isolamento para ficar mais isolado ainda”, confessa. “Isolado e triste. Porque lá eu andava pela floresta — num dia fiz 17 quilómetros, até com água pela cintura —, estava sempre com as pessoas. Estava isolado do mundo, mas não do ser humano. Falta o toque, a alegria das pessoas.”

Quando partiu, ainda antes do Carnaval, já tinha ouvido falar do vírus, “mas era uma realidade muito distante”. Por isso, como escreveu num texto partilhado pelo jornal O Globo, foi “assustador e surreal saber tudo de uma vez só depois de passar tanto tempo na floresta” — “Fomos ao encontro do caos depois de estar numa terra sem males”. Ainda no posto da Polícia Federal, viram-se a ter de explicar que tinham estado numa área sem risco de contaminação, que não representavam uma ameaça. Os agentes acederam, levaram-nos até a um hotel de carro, mas “escondidos”, para não lançar o “pânico”. E de manhã começava o segundo capítulo desta aventura: como voltar a casa, a mais de três mil quilómetros de distância, num país, num mundo, fechado? “Spoiler alert”: os três-quatro dias previstos para o regresso esticaram-se para o dobro.

“No dia seguinte”, conta Paulo, fiando-se no diário de viagem que vai folheando, acordaram cedo para voltarem para o rio Purus em direcção a Lábrea. No hotel, ainda sem terem visto na televisão as apocalípticas imagens de cidades vazias em todo o mundo, tinham estado a congeminar múltiplos planos para o retorno. “Se ali estava assim”, pensavam, “como seria o resto do mundo?”

Em Lábrea, todos os hotéis estavam fechados – tiveram de conseguir uma autorização da Secretaria Especial de Saúde Indígena para pernoitarem num. Permissão válida para uma noite, apenas. Entretanto, perceberam que os dois únicos voos semanais que por lá paravam estavam cancelados: “Como sair?” De carro, então, pela Transmazónica até Porto Velho, para apanhar o avião — 400 quilómetros de “estradinha esburacada de areia” cercada por floresta. Mas a Funai só conseguiria transporte dois dias depois – onde dormir entretanto? “Cheguei a ameaçar que se nos tirassem do hotel, eu iria amarrar a minha rede na praça”, brinca. Não foi preciso tanto. A estadia mais prolongada foi permitida, lá chegaram a Porto Velho e Paulo entrou no avião para o Rio (com direito a três escalas), ao contrário do antropólogo e da bióloga, cujos voos para outros destinos foram cancelados. No balcão de check-in, os mesmos avisos de distanciamento; no avião, onde se viaja “quase no colo do outro”, tudo na mesma. “Nada de máscara, luvas, tudo a respirar o mesmo ar.”

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Paulo Múmia

Quase uma semana depois desde que saíra de perto dos suruwahas, chegava então a casa, no bairro das Laranjeiras, a 27 de Março. O caminho do aeroporto até ao lar, geralmente (bem) acompanhado por muita gente nos bares, estava “deserto, vazio, estranho”. “Foi uma sensação de muita tristeza que não tem muito a ver com o Rio de Janeiro e ao mesmo tempo de… bem, vai pular um zombie do Walking Dead em frente ao carro”, recorda o fotojornalista, algures entre o lamento e gracejo. Por todo o lado, um “silêncio que chegava a doer”. Chegado à sua rua, só escutava “grilos e… ‘fora, Bolsonaro!’”. Era recebido, sem contar, por um “panelaço”, ruidosos protestos com panelas que voltaram a ocupar as janelas dos brasileiros, desta feita contra a forma como o Presidente brasileiro tem gerido a crise de covid-19. “Todos os dias, das 20h30 às 21h, começa a festa, começa a confraternização”, explica, de sorriso na voz. Não falta à chamada, até para aproveitar para mandar o vizinho pró-Bolsonaro para “um monte de lugar”. “Como as pessoas não se encontram nas ruas, encontram-se nas janelas.”

“Um Presidente da mentira”

Paulo Múmia e a mulher, a jornalista portuguesa Sofia Perpétua, tinham uma viagem marcada para Portugal para finais de Maio, regressando ao Brasil no final do ano; agora tudo está em suspenso. Desde que regressou, só saiu de casa duas vezes, para ir ao supermercado. Foi “de luvas e de máscara”; chegado a casa, pôs toda a roupa para lavar, os sapatos à porta. Sabe que há quem tenha os mesmos cuidados, mas sente-se “muito decepcionado” com algumas zonas do Rio de Janeiro que “não acreditam na quarentena”, em particular áreas em que Jair Bolsonaro tem maior influência eleitoral. “Estão a ir para a rua, acham que esse vírus é mentira, inventado para derrubar o Presidente”, descreve Paulo. “Ou dizem que ‘só mata velho’. O que também é muito triste. Não tem problema porque só ‘mata velho’? Que é isso?!” Tudo porque são uma “cambada de malucos a seguir um louco, um psicopata”, um “Presidente da mentira”.

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Paulo Múmia

O Brasil conta actualmente com mais de 20 mil casos de infecção por covid-19, mais de mil mortes, e por diversas vezes Jair Bolsonaro desvalorizou a pandemia. Comparou o vírus SARS-CoV-2 com uma “gripezinha”, disse que teria de ser “enfrentado como homem” e que o brasileiro “não pega nada”. Chegou a defender o fim do isolamento, a criticar as medidas de restrição que os estados foram tomando, a incentivar os brasileiros a trabalhar — divergindo dos governadores e do próprio ministro da Saúde, cuja demissão foi travada no último minuto.

O fotojornalista não consegue deixar de pensar nas consequências que o surto pode vir a ter nas favelas, por exemplo, onde não há água canalizada e saneamento básico, tal como entre as comunidades indígenas, que já contam com três mortes, incluindo um adolescente yanonami de 15 anos. Já muitos alertaram para o risco que a pandemia pode representar para os 800 mil índios brasileiros, uma população particularmente vulnerável a novas doenças, além de ter acesso precário a cuidados de saúde e sanitários. Como prevenir? “Isolamento”, acredita Paulo — e há mesmo comunidades que já bloquearam estradas, sem esperarem pela acção das autoridades.

“O povo indígena está em risco, sim”, evidencia. Além do novo coronavírus, a postura de Jair Bolsonaro perante estas comunidades tem sido “completamente contra”, com um discurso que “legitima as invasões das terras indígenas por ‘garimpeiros’ e madeireiros”. Desde que tomou posse que o Presidente tem manifestado a sua vontade de rever a demarcação das terras indígenas protegidas para permitir a prospecção (“garimpo”) e a exploração de recursos naturais, em prol, diz, do desenvolvimento económico da Amazónia. As invasões têm aumentado, bem como os conflitos violentos entre madeireiros e “garimpeiros” e as tribos – a última baixa, numa série de líderes indígenas assassinados na região, foi Zezico Guajajara, dos guajajaras, no início deste mês.

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Paulo Múmia

“Está a ser desenhado um genocídio”, avisa o fotojornalista, especializado em fotografia de áreas indígenas e fotografia antropológica – o apelido “Múmia” vem, aliás, da formação em Museologia. Falta muita “consciencialização” sobre a importância da riqueza e “pluralidade cultural” dos índios. “Não existe nas escolas nenhum tipo de incentivo à educação que mostre as culturas indígenas”, condena.

Junto dos suruwahas, um povo “fantástico”, “intenso emocionalmente”, ficou impressionado com o “conhecimento da floresta” que a tribo, composta por cerca de 150 membros, tem. Vivem “mesmo isolados”, sem tecnologia ou energia, e são “excelentes alquimistas da floresta”, trabalhando com as plantas de “forma científica”, aprimorando as fórmulas com o passar dos anos, seja para saúde ou alimentação. Fez 7500 fotografias – algumas, se tudo correr bem, verão a luz do dia num livro. Gostaram dele. Disseram-lhe para voltar, um dia. E deram-lhe um nome, apropriado à situação: “Zaima Gainadawa”. “O que sabe olhar as coisas.”