Run, a nova série de Phoebe Waller-Bridge, é “imperdoável” – e também é irresistível
Comédia com laivos de thriller sobre fugir da vida que se tem estreia-se esta segunda-feira na HBO Portugal. Merritt Wever é a protagonista que já merecia sê-lo.
“Sei o que é precisar de outro sítio onde pôr a cabeça e o coração por 30 minutos”, diz a actriz Merritt Wever sobre a estreia da sua nova série, Run, neste cenário de pandemia. Classificar a série como “sua” já é digno de nota, porque começou por temer que este seu primeiro papel de protagonista não pudesse ser seu – “raparigas como eu”, explicou, aludindo ao facto de não se rever nos cânones de Hollywood, “não conseguem papéis destes”, os de protagonista de comédia romântica. Mas uma criação de Phoebe Waller-Bridge, cuja aclamada Fleabag se viu coroada como uma das séries de 2019, também dificilmente se encaixaria num género apenas.
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“Sei o que é precisar de outro sítio onde pôr a cabeça e o coração por 30 minutos”, diz a actriz Merritt Wever sobre a estreia da sua nova série, Run, neste cenário de pandemia. Classificar a série como “sua” já é digno de nota, porque começou por temer que este seu primeiro papel de protagonista não pudesse ser seu – “raparigas como eu”, explicou, aludindo ao facto de não se rever nos cânones de Hollywood, “não conseguem papéis destes”, os de protagonista de comédia romântica. Mas uma criação de Phoebe Waller-Bridge, cuja aclamada Fleabag se viu coroada como uma das séries de 2019, também dificilmente se encaixaria num género apenas.
Run, que se estreia esta segunda-feira na HBO Portugal, é uma comédia que é um thriller e um pouco drama. A sua premissa é irresistível, o seu teor é imperdoável. Os sete episódios serão lançados semanalmente, à medida que se estreiam aos domingos à noite nos EUA. O PÚBLICO já viu cinco, que revelam como a série criada por Vicky Jones e que tem Phoebe Waller-Bridge como produtora executiva é uma matrioska. Jones foi a encenadora original de Fleabag quando a história escrita e protagonizada por Waller-Bridge nasceu num palco, anos antes de se tornar a comédia negra da Amazon sobre uma mulher e seu encontro amoroso consigo mesma que os Emmys consagraram em 2019.
Jones e Waller-Bridge são as artesãs de uma história que vai revelando, episódio após episódio, uma nova mulher e um novo homem em pleno escapismo. Run é fugir. Com ou sem covid-19, é fugir de uma vida que se tem sem aviso prévio, cumprindo uma promessa feita ao amor da faculdade. É como se Richard Linklater tivesse cumprido a promessa feita no final de Antes do Amanhecer. Só que não é bem assim.
Merritt Wever (Unbelievable, Godless, Marriage Story) é Ruby, Domnhall Gleeson (Star Wars, Ex Machina, Mãe!) é Billy. Aos 19 anos, foram amantes, aos 30 e tal reencontram-se graças a uma SMS que os encontra no mesmo estado – em rota de colisão com a vida que escolheram. “Isto é imperdoável”, diz Ruby, recriminando-se por largar tudo e entusiasmando-se na mesma medida. Explicar as pétalas que desabrocham à medida que a intriga de Run amadurece é estragar a sua teia imperfeita; dar espaço a Wever para ser a “girl next door” é subversão necessária e um choque ao sistema Hollywood que vive nas entrelinhas desta série em que Phoebe Waller-Bridge (que nesta altura tem a mão em quase tudo) terá um pequeno papel, mas só mais à frente.
A eterna “aquela actriz"
Merritt Wever não é uma desconhecida, mas parecia a eterna “aquela actriz”. Secundária, como o papel que fez em Marriage Story, ou como o porto seguro no trauma de Unbelievable. Já foi premiada (tem dois Emmys de Melhor Actriz Secundária por Nurse Jackie e Godless), mas interiorizou aquilo que não queria e em que não acredita.
Numa entrevista amplamente citada ao Los Angeles Times a propósito de Run, a actriz conta como adorou o guião, como sentiu que Ruby era “alguém que estava esfomeada por algo”, mas também como o processo de audições a forçou a encarar “como tinha internalizado certas ideias sobre quem pode ser o quê”. Perguntava: “Estão a confundir-me com alguém? Como é que podem escolher-me para isto?”
A actriz confrontou-se então com as fronteiras rígidas dos papéis de género e dos papéis de um certo género que vigoram na ficção audiovisual, como em tantos outros sectores da sociedade. “Sempre me disseram, explícita e implicitamente, que não era uma opção para mim [ser protagonista de um romance].”
“Comecei na profissão quando tinha 15 anos e o meu primeiro agente disse-me: ‘Bom, se não perderes X quilos só vais ter o papel da melhor amiga’.” Apesar de ser filha de uma feminista e de ter crescido numa comunidade de esquerda progressista, deu por si a escrever a Vicky Jones: “Não posso ser aquela rapariga para vocês. Não posso ser aquilo.” Jones disse-lhe que, muito pelo contrário, ela podia ser tudo.
E assim Merritt Wever é agora uma destes dois “estranhos num comboio”, navegando a sua tensão sexual, os seus segredos e os seus traumas aos encontrões num cenário de fuga que não só se pode observar através dessa lente da tipificação de actores e de papéis como, inesperadamente, pela janela que os ecrãs se tornaram para o mundo lá fora, quase proibido nestes dias de confinamento.
Tudo começa num carro sensato num parque de estacionamento de supermercado que é uma grelha tão entediante quanto asfixiante. O início de cada episódio mostra um vislumbre da vida passada dos dois fugitivos, com revelações sobre homens e mulheres desencontrados com o destino. A crítica está genericamente satisfeita com Run – “é sempre uma alegria recomendar uma boa nova série”, escreve Jen Cheney no Vulture; “desconcertantemente satisfatória”, diz o Guardian; “excêntrica mistura de farsa sexual e thriller de Hitchcock”, descreve Alan Sepinwall na Rolling Stone. E mostra-se especialmente saciada com os dois actores que fazem esta maratona, 20, 30 minutos de cada vez, por todos os que estão dentro de casa a olhar lá para fora e a pensar “e se?...”.