Tempos de covid-19: reclusão, austeridade, ócio e… pequenas histórias
Nós, os velhos e os privilegiados que podem ficar em casa, o melhor é dedicarmos este tempo de ócio — como dizem por aí os intelectuais da nossa praça — à cultura. Mas o pior é que não há Cultura sem nos encontrarmos para a discutir e… viver.
Neste canto do país interior (esquecido de quase todos os que vivem nas capitais, excluindo nos dias de desgraça), onde passo metade do ano e onde considerei que há melhor ambiente para ultrapassar esta reclusão forçada motivada pela tão falada covid-19, encontrei ao longe a D. Gracinda, católica fervorosa, do coro que ensaia às sextas-feiras. Com falta da missa dominical (a igreja ostenta nas suas três portas um dístico que até a mim me impressionou: Missas Canceladas — assim, sem mais nem menos), disse-me, ou gritou-me, com o seu ar simples e generoso, procurando olhar estes tempos dramáticos pelo lado positivo: “Ao menos agora só se fala em união e deixaram todos de discutir.” Disse-lhe que sim, mas a palavra associa-se na minha cabeça à União Nacional, de triste memória. Mas — vá lá — também ao governo da União Sagrada, que o nosso conterrâneo António José de Almeida, imitando o modelo francês, liderou durante a Grande Guerra, em 1916-1917, um ano antes da pneumónica e pouco tempo antes da experiência ditatorial e presidencialista de Sidónio.
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Neste canto do país interior (esquecido de quase todos os que vivem nas capitais, excluindo nos dias de desgraça), onde passo metade do ano e onde considerei que há melhor ambiente para ultrapassar esta reclusão forçada motivada pela tão falada covid-19, encontrei ao longe a D. Gracinda, católica fervorosa, do coro que ensaia às sextas-feiras. Com falta da missa dominical (a igreja ostenta nas suas três portas um dístico que até a mim me impressionou: Missas Canceladas — assim, sem mais nem menos), disse-me, ou gritou-me, com o seu ar simples e generoso, procurando olhar estes tempos dramáticos pelo lado positivo: “Ao menos agora só se fala em união e deixaram todos de discutir.” Disse-lhe que sim, mas a palavra associa-se na minha cabeça à União Nacional, de triste memória. Mas — vá lá — também ao governo da União Sagrada, que o nosso conterrâneo António José de Almeida, imitando o modelo francês, liderou durante a Grande Guerra, em 1916-1917, um ano antes da pneumónica e pouco tempo antes da experiência ditatorial e presidencialista de Sidónio.
Também se fala por aí de um “tempo de guerra”, embora a expressão me choque, não porque tivesse estado numa grande guerra, onde tudo falta e muito mais se sofre, mas passei por uma guerra de guerrilha, na Guiné, em 1968-69, onde o “inimigo”, que nem considerávamos inimigo, nos atacava, em Mansoa, sem sabermos nem quando nem de onde. Nós que, na messe, com o então major Fabião, o do 25 de Abril, cantávamos, nas quentes noites tropicais, a liberdade, o Zeca e o Adriano, e, ao fim da tarde, na missa, o Padre Mário de Oliveira reclamava contra a violência da guerra, o que o levou a “ser mandado de patins” (como dizíamos) para a “Metrópole”, iniciando assim um combativo processo que o levaria às prisões da PIDE.
O Senhor José, marido da D. Fátima, nome do minimercado onde vamos comprar o leite do dia (e não aquele que, por artes mágicas, nos oferece meses de validade), dizia-me, quando estava ainda em Coimbra, antes de procurarmos estas terras próximas do beneditino mosteiro de Lorvão: “Agora é que se lembram dos pequenos. Nem sabe o que ouço por aqui. Até me telefonam a perguntar: o papel higiénico já não há nas grandes superfícies. E aí?” Eu, que com ele faço coro quando os voluntários pedem bens para os bancos alimentares somente nos hipermercados, dei-lhe razão, evidentemente. E lembrei-me do meu amigo Augusto (que faz da ironia, por vezes brejeira, uma forma inteligente de viver, no meio do pesado ofício de investigar em História) a dizer ao Carlos, ateísta militante mas respeitador das crenças dos outros, que ele acabaria um dia por morrer não abraçado à cruz mas a um rolo de papel higiénico. Parece que as pequenas coisas e as pequenas empresas agora valem mais… Algumas, pois as pequenas tabernas de Coimbra, como a D. Lúcia, e, aqui em Penacova, O Cantinho ou a Tasquinha do Clides, fecharam como os grandes e os caros restaurantes, sem hipóteses de os podermos ajudar com a nossa simples contribuição, pois não servem “para fora” (takeaway, como se diz agora, à inglesa ou à americana ou, como diria ironicamente o meu amigo Monteiro, em “bom português”).
Parece que vamos entrar numa outra grande crise com outro período de austeridade, não aquela a que nos impôs a troika e nos obrigou Passos Coelho e a sua inseparável ministra Maria Luís, sob a tutela do presidente Cavaco, defensores de um neoliberalismo que era negado por alguns jornalistas (tal como o fascismo, “que nunca existiu”…) e que alterara as hipóteses de uma economia relativamente humana, mas uma austeridade que até custa àqueles que a combatiam. Aqueles que parecem defender ou defendem mesmo uma economia social, afastada de um capitalismo sem alma.
Enfim, os tempos serão maus para todos, embora alguns possam escapar, por via da sua situação, da sua tenacidade ou do seu oportunismo. Afinal a história, como sempre disse, nunca foi uma linha recta, mas sim uma espiral. Vico tinha razão. Passamos por pontos idênticos mas diferentes: não por um eterno retorno, mas por situações ao mesmo tempo distintas e semelhantes. É que a Natureza vai mudando mas é a mesma, assim como o Homem, esse eterno desconhecido.
Felizmente, nestes momentos que vão passando, pelo menos não nos chega a notícia de outra aparição nem de uma santinha que nos ajude e nos livre, até com a sua água benta (agora também fora de uso) e com os seus milagres, dos males do mundo (“culpa da maldade dos homens”), mas sim um apelo à Fraternidade. Todavia, países tão avançados, como a Holanda, que nos apresentam regulamentos para a vida e para a morte tidos como progressistas, acabam por recusar o sentido da União Europeia, pensando talvez ainda que alguns povos do sul passam a vida com gastos supérfluos, talvez nos copos e em outros vícios ainda piores. Nem se lembram esses Países Baixos que são bem maiores nos seus defeitos, apesar de algumas virtudes que ostentam como um emblema de superioridade. Então onde estão os paraísos fiscais?! E, para falar de copos e já que estamos a contar histórias, foi na velha Grã-Bretanha que ouvi contar a um amigo espanhol que trabalhava na Universidade para onde me convidaram, que, à pergunta trivial a alguns dos seus colegas ingleses “Como vais passar o fim-de-semana?”, eles respondiam “Vamos embebedar-nos, pois claro”. E concluía “Nós só diríamos: vamos beber uns copos e comer umas tapas”.
Pelo menos, gostamos de confraternizar com os amigos e beber um bom tinto ou um tinto do lavrador. Como me fazem falta alguns momentos que passava por aqui com o Senhor António, o Senhor Mário, o Senhor Belmiro ou o Luís — que chama “fascistas” aos que vêm ao seu café-tertúlia e proferem afirmações que considera reaccionárias —, a beber um copo, ou pouco mais, acompanhado de um queijinho, de um chouriço ou até somente de uns tremoços! Esperemos que voltem em breve. Entretanto, nós, os velhos e os privilegiados que podem ficar em casa, o melhor é dedicarmos este tempo de ócio — como dizem por aí os intelectuais da nossa praça — à cultura. Mas o pior é que não há Cultura sem nos encontrarmos para a discutir e… viver.