Vou licenciar-me virtualmente, sem direito a rituais de passagem
Testemunho de Leonor Castelo, estudante. “Não é que a covid-19 seja uma vingança da natureza contra nós, a verdade é que o vírus se espalha alheado da humanidade.”
Na segunda-feira, dia 9 de Março, após a aula das 8h, percorri os corredores da Clássica, sem imaginar que era a última vez que o fazia enquanto aluna. Foi só à noite que recebemos a notícia de que a Universidade de Lisboa tinha encerrado as actividades presenciais. Era uma medida provisória, uma consequência de um vírus do qual ainda não projectávamos o impacto.
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Na segunda-feira, dia 9 de Março, após a aula das 8h, percorri os corredores da Clássica, sem imaginar que era a última vez que o fazia enquanto aluna. Foi só à noite que recebemos a notícia de que a Universidade de Lisboa tinha encerrado as actividades presenciais. Era uma medida provisória, uma consequência de um vírus do qual ainda não projectávamos o impacto.
Por estes dias, acordo com os mimos da família. Antes da quarentena quem me acordava era o despertador. Levanto-me, passo pela sala, onde uns trabalham e outros estudam, e arrumo a cozinha. São as vantagens e as desvantagens deste tempo de isolamento.
Agora vou licenciar-me virtualmente, sem direito a rituais de passagem, cruciais para processar os acontecimentos. Como eu, uma amiga que estudava no Reino Unido regressou sem se despedir da casa onde viveu os últimos três anos e sem poder abraçar a família nos 14 dias seguintes. Outra amiga, apesar de o seu estágio ter sido interrompido, está em Madrid, onde já morreram milhares de pessoas por infecção da covid-19. Um amigo paga renda em Milão, para que não despejem os seus pertences, e assiste às aulas italianas em Lisboa. Pior do que nós está a minha prima prestes a terminar o secundário, sem saber como se preparar para os exames, ou em que termos estes vão acontecer. Sentimos que nos tiraram o tapete. Chama-se suspensão de garantias.
Não é que a covid-19 seja uma vingança da natureza contra nós, a verdade é que o vírus se espalha alheado da humanidade, cabendo apenas aos governos preocuparem-se connosco. Fechados em casa também se torna fácil alhearmo-nos da devastação que ele causa. Estamos numa bolha privilegiada, onde as notícias parecem ficção, ou, no mínimo, distantes. Sair torna-se fundamental, ainda que os passeios higiénicos sejam assombrados pelo medo que alguém me tussa em cima, tocar no que não devo ou ser julgada por não #ficaremcasa. Respirar a maresia é o segredo para aturar as manias, que com o confinamento se tornam insuportáveis, das pessoas que mais amamos.
Recordo-me da greve climática estudantil, no dia 29 de Novembro de 2019, em que exigíamos que o Estado declarasse emergência climática. Desabafava, desanimada, que se conseguíssemos o que queríamos, para ser eficaz, implicaria vivermos de acordo com a noção de liberdade positiva, de Isaiah Berlin. Situação que imaginava semelhante a uma ditadura, pois o desmantelamento do capitalismo significaria acabar com a vida como a conhecíamos. Verificamos agora, num momento em que só compramos o essencial, a velocidade a que uma crise económica apocalíptica se instala. Fomos rápidos a adaptarmo-nos a esta situação, mas as estruturas sociais e económicas não estavam preparadas. A cultura, no entanto, subsiste, apesar de gratuita para todos. Espero que quando isto acabar mostremos a nossa gratidão à arte que nos salvou, à música que melhorou os nossos dias, aos filmes que nos fizeram escapar à realidade e aos livros que nos encheram com outras vidas.
Apesar disso, a ideia de que a quarentena é um retiro espiritual é uma romantização que chega a ser ridícula. Confesso que sonhei muitas vezes com o dia em que me exilava da cidade, ia para um pedaço de terra deserto onde pudesse dedicar-me apenas à criatividade e a mim. Apenas um sonho, porque sabia que o resto da vida não ficaria em espera, à minha espera. E agora todos temos a vida interrompida e parte de mim teme já não saber voltar ao normal. A incerteza do que será o novo normal é ainda mais sufocante.