São Paulo, uma prece pela diferença

O que é ter um corpo diferente, ser negro, mulher, pobre, refugiado na imensa cidade que é São Paulo? A histórias de três jovens ficcionadas, por Lygia Fagundes Telles, na São Paulo de 1970, As Meninas, cruza-se com a de um homem real na cidade de hoje num tempo que parece tão circular quanto novo e cheio de pistas para ler o Brasil actual. País sempre em construção ou sempre em ruína?

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Quando a vida era normal, Jé, cabelo crespo quase rapado, pele morena quase negra, bigode como o de um malandro, levou a chave à fechadura e abriu a porta da casa onde mora numa condição muito diferente daquela onde cresceu. “Toda a minha vida, até à idade que tenho hoje, vivi em dois cómodos, eu, o meu pai, a minha mãe e o meu irmão, todo o mundo morava num quarto só; era quarto, cozinha e banheiro. Isso aqui é um palácio. Nunca tive um quarto só para mim”, diz, aos 37 anos, junto ao prédio de três pisos, um dos mais baixos do quarteirão e dos poucos sem porteiro nem segurança, mas onde tem agora um quarto, sala, cozinha, casa de banho e um pequeno pátio. Na verdade, esse pátio é um recorte quadrado de céu de onde pode ver a lua, quando ela está a pique.