O superior valor da vida humana
Não podemos continuar a aceitar como naturais mortes que são sistémicas e resultam de poluição, de acidentes rodoviários em meio urbano e de fenómenos climatéricos extremos cada vez mais frequentes, a bem de uma economia assente em lógicas que recusamos alterar. Nem continuar a disfarçar com compromissos ténues aquilo que continua a ser a nossa caminhada comum para uma tragédia anunciada.
Desde que a pandemia da covid-19 começou a obrigar – primeiro na Ásia, depois na Europa, e finalmente por todo o mundo – a colocar as cidades e grande parte da produção em shutdown, tornou-se evidente que a redução da poluição e das emissões de CO2 seriam uma consequência óbvia desta fase de suspensão das nossas vidas.
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Desde que a pandemia da covid-19 começou a obrigar – primeiro na Ásia, depois na Europa, e finalmente por todo o mundo – a colocar as cidades e grande parte da produção em shutdown, tornou-se evidente que a redução da poluição e das emissões de CO2 seriam uma consequência óbvia desta fase de suspensão das nossas vidas.
As imagens de satélite onde se verificava a redução de emissões na China ou as fotografias com cardumes a passear nos canais, agora azuis, de Veneza foram, contudo, sentidas por alguns como se os mais despertos para as alterações climáticas julgassem que a limpeza do ar e da água compensava a dramática mortalidade que já então se pressentia – o que, a ser assim, significaria uma obstinação e chocante falta de empatia perante o sofrimento alheio.
Olhar adiante, tentando ver nesta crise algum sentido, em momento algum a torna bem-vinda, nem põe em causa a dor que ela acarreta. Quem encontra na redução das emissões algum consolo, não o encontra por falta de empatia pelo sofrimento humano mas, justamente, porque vê e antevê a perda de milhares de vidas também numa crise ambiental que, para muitos, é ainda uma abstracção.
Ninguém desejou uma doença que faz da humanidade tubo de ensaio, mas ela não deixa de abrir caminho a estudos científicos que jamais poderiam ser realizados noutras circunstâncias. Um dos estudos que desde o início da pandemia me pareceu óbvio, numa altura em que os noticiários abrem diariamente somando vítimas aos dados do dia anterior, foi um que colocasse esta tragédia em perspectiva. Que pusesse, lado a lado, as mortes que se somam… com aquelas que se subtraem. Hoje, começam timidamente a sair notícias que dão conta disso mesmo.
Se olharmos para as principais causas de morte no mundo, sete em oito encontram-se, de algum modo, relacionadas com o nosso modo de vida e quatro resultam (pelo menos em boa parte) da poluição e de acidentes rodoviários.
Cingindo-me àquela que será, porventura, a mais clara estatística (por não resultar de uma combinação de factores): todos os dias morrem no mundo quase 3700 pessoas vítimas de acidentes rodoviários – a esmagadora maioria das quais nos centros urbanos. É o equivalente a caírem nove Boeings 747 por dia; um total que ascende a 1,35 milhões de mortes/ano e a principal causa de morte na faixa dos 5 aos 29 anos – um absurdo. E, no entanto, aparentemente, aceitamos estes números – provavelmente porque não os vemos.
Com as cidades paradas, facilmente se extrapola que o número de vítimas de acidentes rodoviários seja, nesta altura, insignificante. Estaremos, talvez, a falar de 100.000 vidas poupadas em cada mês que durar este estado de emergência? Não sei. Mas estou certa de que esse é um cálculo que alguém em posse dos números tratará de fazer quando tudo isto terminar.
Por outro lado, sabemos que a poluição do ar causa cerca de sete milhões de mortes/ano no mundo, quase 6800 só em Portugal, para referir números de 2016; são 18 portugueses por dia ou, se preferirmos, 400.000 europeus, em números de 2019. E que um estudo do Comité Ambiental do Fórum das Sociedades Respiratórias Internacionais, publicado na Annals of the American Thoracic Society, concluiu, para surpresa dos próprios investigadores, que a redução da poluição tem resultados quase imediatos na saúde e na redução da mortalidade. Por seu lado, a EPHA faz notar que a poluição com que nos habituámos a viver cria um cenário de maior vulnerabilidade ao próprio covid-19, ao mesmo tempo que o centro de investigação CREA estima que só as despesas em saúde e faltas ao trabalho resultantes da poluição têm um custo económico equivalente a 3,3% do PIB mundial. Valor esse ao qual se somam muitos outros.
Dito isto, começam a surgir os primeiros estudos, que procuram contabilizar o número de mortes no seu conjunto, comparando os valores actuais com aqueles que teríamos caso a nossa vida estivesse a correr dentro da normalidade. Um estudo preliminar, realizado nos EUA e tendo como referência a semana terminada a 7 de Março, aponta para uma redução significativa da mortalidade em geral – a rondar os 20% e que chega aos abruptos 76% na faixa etária dos 0 aos 18 anos –, um decréscimo de quase 9000 mortes em apenas uma semana, por comparação com os últimos cinco anos. São dados relativos a uma fase em que o shutdown já se começava a sentir mas em que o número de vítimas da covid-19 era ainda reduzido – e que terão, entretanto, sofrido um infeliz abalo, não apenas pela propagação exponencial da pandemia, mas também pela temida falência dos serviços de saúde (que, como sabemos, tende em resultar num aumento da mortalidade também entre os demais doentes). Tal não invalida, contudo, que à soma das vítimas da pandemia sejam subtraídas vidas ironicamente poupadas pelas circunstâncias e cujos valores, a confirmar, não são de todo desprezíveis.
Quais as conclusões a tirar daqui? Primeiro, algum alento, que nos possa vir dos números, de uma conta que soma mas também subtrai. Depois, que muitas das mortes com que nos habituámos a conviver são evitáveis e tudo menos naturais – se não abrem noticiários é apenas porque nada têm de excepcional. São, por assim dizer, invisíveis. Finalmente, que esta pandemia tornou claro – quer pela posição dos governos do mundo inteiro, quer pela ampla aceitação das medidas de emergência por parte das populações – que a vida humana é aceite por toda a civilização, independentemente da sua cultura, política ou religião, como superior e inegociável. Para contenção desta pandemia e salvação de milhares a economia pôde, e bem, ser afinal travada a fundo.
Não queremos (sobre)viver trancados em casa. Nem, de modo algum, que a actividade humana continue suspensa como vem estando por estes dias – com as consequências económicas que resultarão de uma paragem emergente, abrupta e despreparada, e que será particularmente dramática nos países mais pobres.
Mas não podemos continuar a aceitar como naturais mortes que são sistémicas e resultam de poluição, de acidentes rodoviários em meio urbano e de fenómenos climatéricos extremos cada vez mais frequentes, a bem de uma economia assente em lógicas que recusamos alterar. Nem continuar a disfarçar com compromissos ténues aquilo que continua a ser a nossa caminhada comum para uma tragédia anunciada.
Que esta paragem forçada e o sequente relançamento da economia sejam, sim, uma oportunidade; e não mais uma justificação para adiar metas que só pecam pela demora e falta de ambição. Que esta interrupção permita também, a cada um de nós, reflectir sobre o que cabe a si mudar, para que o regresso à normalidade dos dias seja mais do que isso mesmo.
Porque os custos económicos da inacção são e serão cada vez mais pesados e torpes na sua distribuição. Mas, acima de tudo, por aquilo que, afinal, todos concordamos: o valor da vida humana é inegociável e razão quanto baste para que o nosso modo de vida seja repensado.