Estado coercivo vs. Estado democrático
Nesta quase constante banalidade do autoritarismo, o desequilíbrio entre o excesso de poder e a pobreza da vida urbana na maioria das nossas pequenas e médias cidades torna-se hoje ainda mais evidente.
Nunca como agora, no auge da distopia do coronavírus, se percebeu e sentiu tão bem a diferença de potencial entre a eficácia do poder coercivo do Estado (autarquias inclusive) e a falta de vontade para promover políticas e estratégias orientadas para a revitalização da vida pública (vitalidade urbana) nas cidades há demasiado tempo anestesiadas pelos feiticeiros da globalização e seus acólitos locais. E isso demonstra bem a falta de qualidade da nossa democracia, e em especial da democracia de proximidade, ou seja, da democracia participativa.
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Nunca como agora, no auge da distopia do coronavírus, se percebeu e sentiu tão bem a diferença de potencial entre a eficácia do poder coercivo do Estado (autarquias inclusive) e a falta de vontade para promover políticas e estratégias orientadas para a revitalização da vida pública (vitalidade urbana) nas cidades há demasiado tempo anestesiadas pelos feiticeiros da globalização e seus acólitos locais. E isso demonstra bem a falta de qualidade da nossa democracia, e em especial da democracia de proximidade, ou seja, da democracia participativa.
Como se tem visto e revisto à exaustão, as autoridades nacionais e locais souberam muito bem exercer o poder de coerção e o condicionamento das liberdades e dos direitos dos cidadãos, obrigando-nos todos a ficar enclausurados nos “cubículos” de cada um. Tornou-se banal ver as polícias questionar os transeuntes com uma superioridade paternalista acerca dos motivos que os levam a deslocarem-se ou a saírem de casa, como se tal gesto fosse um crime de desobediência civil contra o estado de emergência. Note-se que não se pretende aqui fazer uma crítica à estratégia anti-covid sustentada nas medidas de confinamento e distanciamento físico. Mas tão-somente analisar a diferença nos usos dos poderes e das forças delegados pelo povo português no contrato social que é a Constituição da Republica Portuguesa.
O monopólio do uso da força foi entregue ao Estado nos contratos sociais desde que estes são sustentados na teoria política do filósofo inglês Thomas Hobbes. Essa delegação de poder tem como fundamento racional evitar a “guerra de todos contra todos”, substituindo a justiça subjectiva (a barbárie de fazer justiça com as próprias mãos) pelo direito universal. O problema aparece quando o Estado abusa da prerrogativa monopolista e se torna um Leviatã, exercendo sobre a sociedade civil um poder discricionário (opressão) que ultrapassa os limites do contrato social. Por outro lado, este mesmo Estado pouco tem contribuído para o aprofundamento da democracia local nos tempos mais recentes. Não pode pois haver maior ameaça para a democracia, como afirma Elísio Estanque, quando são os próprios agentes da política a desprezar os valores e os ideais de Abril, esgotando-se na gestão do poder pelo poder.
A utilização de diversos meios e técnicas para vigilância e repressão dos cidadãos são conhecidos (pelo menos) desde as investigações de Foucault acerca do uso do panóptico nas prisões, mas hoje o panóptico não é apenas um dispositivo centralizado, ele está disseminado pelas redes sociais e em cada pessoa que se considera um agente ao serviço do sistema de vigilância, ou seja, mais ou menos aquilo que na época do Estado Novo eram os chamados “bufos” ao serviço da PIDE. Durante a pandemia, o modelo tecno-autoritário chinês está já a ser importado para a Europa, causando enorme perplexidade e motivos de preocupação nos defensores das liberdades e dos direitos humanos, veja-se a declaração da Amnistia Internacional.
Nesta época de crise pandémica, as forças de segurança convocaram 39 mil agentes e militares para garantir o cumprimento das restrições impostas pelo estado de emergência, as estações de comboios, os terminais de autocarros e as estradas estão sob vigilância apertada. O uso de drones, de avionetas e de carros a emitir palavras de ordem de recolha obrigatória passaram a fazer parte do nosso quotidiano distópico.
Contudo, pelo contrário, numa situação “democraticamente normal” (pré-covid), aquilo que deve estar nos antípodas da coerção, ou seja, os mecanismos e as estratégias que favoreçam os direitos e as diversidades culturais no quotidiano das cidades médias e pequenas (que é onde a maioria das pessoas vivem) têm falhado redondamente.
Em Abril de 2020, 46 anos depois da Revolução dos Cravos, os municípios portugueses estão ainda longe de serem as geografias plurais de construção da vida plena que a ideia de cidade nos promete desde que Aristóteles a formulou como sendo o lugar próprio do ser humano enquanto animal político, cívico e social. A promessa de bem-estar colectivo vivida em comunidade, do florescimento e da autonomia individual, das liberdades e da emancipação, é uma pálida miragem das potencialidades concretas que o desenvolvimento intrínseco à educação e ao desenvolvimento humano, tecnológico, etc., entretanto proporcionaram.
Nesta quase constante banalidade do autoritarismo, o desequilíbrio entre o excesso de poder e a pobreza da vida urbana na maioria das nossas pequenas e médias cidades torna-se hoje ainda mais evidente. Podíamos meter as culpas todas na desolação movida pela máquina capitalista que plantou shopping centers e estilos de vida tipo “american way of life” em todos os territórios, mas esses mesmos shoppings tiveram de ser licenciados pelas autarquias, e o definhamento do comércio local e dos espaços públicos não padece apenas de uma única explicação “alienígena”. Há pois outras razões específicas que se podem encontrar na falta de iniciativa política local e na falta de promoção da participação sustentada e duradoira dos cidadãos na vida pública.
A lenta agonia das cidades e da vida urbana, já tantas vezes analisada por investigadores sob as mais diversas perspectivas, não é certamente responsabilidade da pandemia, o vírus é só mais um acontecimento que nem sequer veio alterar assim tanto o cenário quotidiano das cidades anestesiadas e da normalidade das ruas vazias e do empobrecimento do quotidiano sociocultural das comunidades. Nas cidades de pequena dimensão, o cenário moribundo quase generalizado parece ser uma fatalidade imposta por algum castigo divino. Na verdade as nossas cidades já foram muito mais vividas no dia-a-dia com uma vida cultural muito mais intensa nas décadas de 1990 e 2000, muito de nós sabem que isto não é apenas uma verdade teórica, foi uma experiência vivida.
O Direito à Cidade, obra de Henry Lefebvre publicada em 1968, continua a ser desprezada entre os autarcas portugueses como se fossem realmente ignorantes e não soubessem o significado deste direito no enquadramento das políticas locais, nomeadamente do seu impacto na vitalidade e na diversidade cultural que é aquela que de facto importa para a sanidade mental dos portugueses, e em especial dos mais jovens, por razões óbvias de sociabilidade e desenvolvimento da autonomia.
Por todas as razões urge reinventar o municipalismo português, em especial naquilo que é a relação interdependente entre cidade e cultura – sistematicamente investigada, por exemplo, na dissertação de doutoramento do sociólogo João Teixeira Lopes, intitulada A Cidade e a Cultura - um estudo sobre práticas culturais urbanas.
Faz agora praticamente um ano que decorreu na Assembleia da República o seminário “2021 — Um novo Paradigma para o Poder Local”, organizado pela ANAM — Associação Nacional de Assembleias Municipais, o qual teve como objectivo debater o reequilíbrio de poderes ao nível municipal, diminuindo o excessivo protagonismo dos presidentes de câmara de modo a reverter a constatação de que a assembleia municipal tem sido um órgão secundarizado no poder local, até porque, não convém esquecer, a “assembleia municipal é o órgão deliberativo do município e é constituída por membros eleitos directamente” (Art. 251.º — CRP).
Em 2016, foi publicado o Manifesto Municipalista afirmando que um dos desafios do municipalismo consiste em obter reconhecimento social e institucional da existência e autonomia dos espaços sociais e centros de gestão cidadã que coloquem em prática o direito à cidade e a participação democrática, bem como do aperfeiçoamento das formas de representação e do exercício do poder político da cidadania. Desse reconhecimento explícito, surge a necessidade de que os municípios forneçam recursos, condições e infra-estruturas públicas para uso comum.
Na primavera de 2018, durante uma iniciativa da Fundação Cultural Europeia, pessoas ligadas a múltiplas plataformas políticas municipais, organizações da sociedade civil, movimentos sociais e círculos culturais reuniram-se em Amesterdão com objectivo de criar espaço para a troca de conhecimentos e práticas para a emergência de um novo municipalismo e de uma nova cultura e, assim, sugerir novas formas de irrigar uma “nova democracia” na Europa e no mundo. O movimento para um novo municipalismo precisa da cultura porque os só movimentos sociais e políticos, que também sejam movimentos culturais, serão capazes de estabelecer uma nova realidade municipal.
A interdependência entre municipalismo e cultura reside no facto de que o municipalismo só poder ser fortalecido pela transformação cultural, que, por sua vez, só pode ser estabelecida através de uma nova prática cultural sustentada num novo municipalismo.
Para além da dimensão cultural, o novo municipalismo assenta na feminização da política e na ecologia profunda. A imaginação ecológica é uma base fundamental para a renovação do corpo colectivo e para compreensão de que os processos sociais são processos orgânicos, olhando para o sistema social como um ecossistema de múltiplos agentes e entidades interdependentes.
O papel que a dimensão cultural dos municípios portugueses deve assumir num futuro próximo vem sendo debatida em várias cidades. Neste âmbito, a partir do artigo A insustentável leveza do municipalismo cultural , a Acesso Cultura organizou um conjunto de debates, a partir dos quais foi produzido um documento com as respectivas conclusões , vejamos algumas:
- Os vereadores da cultura e os presidentes das autarquias não se devem imiscuir na programação cultural do seu município. Devem delegar e dar voz às organizações culturais locais, dando os meios para estas se desenvolverem livremente;
- O poder político das autarquias deve dar total liberdade aos programadores culturais, tendo sempre em conta uma programação cultural criteriosa e pluralista, que possa ajudar a formar novos públicos mais conscientes, críticos e exigentes;
- Falta de clareza/transparência das políticas culturais — necessidade de reivindicar esquemas de transparência, regulamentação própria; necessidade de independência na avaliação de projetos culturais à escala local;
- Necessidade de os agentes independentes caminharem e agirem a um ritmo e com linguagens próprias e autónomas, alternativas e desafiadoras ao poder político;
- O entendimento da abrangência do conceito de cultura, da diversidade cultural e do ecossistema cultural dos territórios são aspetos fundamentais a ter em linha de conta para se ter plena consciência do papel da cultura e das políticas culturais municipais;
- Os impactos das políticas culturais não se podem resumir à análise da vertente económico-financeira, pois esta deve incluir, entre outros, aspetos relacionados com o desenvolvimento humano e comunitário, bem como o papel transformador da cultura.
Na antiga Grécia, os cidadãos optaram por escolher a cidade e a justiça porque preferiram estar sob a alçada das leis e do direito, em vez de sob a violência de todos contra todos ou da vontade absolutista de um soberano. A partir desse momento, a cidade é uma construção activa dos cidadãos, e não uma abstração gerida por uma qualquer câmara municipal. Uma cidade é um ecossistema social e urbano vivo, e não apenas um traçado de vias perpendiculares e rotundas embelezadas por “mamarrachos “— escolhidos a dedo por presidentes de câmara ávidos de carisma.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico