A discriminação consentida
O modo como lidarmos com o alastrar da covid-19 nos lares de idosos vai definir-nos enquanto sociedade. A nossa percepção dos idosos reflecte quem somos.
Faz agora um mês que os lares de idosos fecharam as portas a visitas, primeiro apenas em alguns distritos, depois em todo o país. Um mês passado registam-se mais de 60 óbitos em lares e mais de 1000 infectados (incluindo funcionários), sendo muitos os casos-limite como o do lar da Misericórdia, em Aveiro, em que faleceram 15 idosos e existem 80 infectados, mais 51 infectados em Vale de Cambra, mais 40 em Ílhavo, e sem que os demais idosos tenham um afastamento profiláctico… 15% dos óbitos por covid-19 correspondem a idosos que viviam em lares. Sabemos que a covid-19 atinge sobretudo os mais velhos, entre os quais se regista uma taxa de 10,7% para uma média nacional de 2,8%. Sabemos também que estas elevadas taxas se mantêm abaixo dos 27,6% de portugueses idosos, o que significa que se lhes tem conseguido prestar algum nível de protecção.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Faz agora um mês que os lares de idosos fecharam as portas a visitas, primeiro apenas em alguns distritos, depois em todo o país. Um mês passado registam-se mais de 60 óbitos em lares e mais de 1000 infectados (incluindo funcionários), sendo muitos os casos-limite como o do lar da Misericórdia, em Aveiro, em que faleceram 15 idosos e existem 80 infectados, mais 51 infectados em Vale de Cambra, mais 40 em Ílhavo, e sem que os demais idosos tenham um afastamento profiláctico… 15% dos óbitos por covid-19 correspondem a idosos que viviam em lares. Sabemos que a covid-19 atinge sobretudo os mais velhos, entre os quais se regista uma taxa de 10,7% para uma média nacional de 2,8%. Sabemos também que estas elevadas taxas se mantêm abaixo dos 27,6% de portugueses idosos, o que significa que se lhes tem conseguido prestar algum nível de protecção.
E, não obstante, os mais velhos, aqueles que são hoje o reflexo do nosso futuro, vivem sob uma dramática angústia, olhando para o seu passado, comparando-o com o seu presente e receosos com o seu futuro, sobretudo se vivem num lar. Antes de infectados já estavam sós, antes das portas fechadas já estavam marginalizados, antes do medo da covid-19 já estavam deprimidos por tantas formas de discriminação que os atinge paulatina e (talvez) imperceptivelmente…
Os mais velhos entre nós são, desde há muito, vítimas de uma discriminação que a covid-19 colocou a descoberto. Não temos, em Portugal, registos de indignidades como se verificaram em Espanha, onde o Exército encontrou lares com cadáveres nas camas ao lado de outros idosos vivos e abandonados; ou em que um grupo de idosos infectados, num processo de transferência de localização, foi apedrejado. Mas não posso deixar de pensar na intensa cobertura mediática de jovens europeus de origem asiática que protestavam contra a discriminação de que se sentiam vítimas quando a covid-19 se confinava à China. Em relação aos idosos impera o silêncio: o deles, que não reclamam, e o da sociedade, que cala e consente.
O “politicamente correcto” em relação a outros grupos sociais, distintos pelo género, etnia, religião, orientação sexual, etc., impõe-se como respeito pela dignidade humana, como reconhecimento do valor absoluto e incondicionado (não dependente de quaisquer características) da pessoa. O mesmo, porém, não se aplica aos idosos – na sua redução a uma característica, a idade –, à “geração grisalha” – na sua identificação pela cor (do cabelo). Há discriminação consentida em relação aos idosos. O comportamento negligente de muitos jovens durante a pandemia, evidencia-o; a afirmação, por parte de políticos norte-americanos, que a eventual morte de idosos pela covid-19 seria o contributo destes para uma economia que não pode parar é um atentado violento contra os direitos humanos e devia converter-se urgentemente num anacronismo social.
Mas a sociedade não questiona, nem se interroga; não se indigna, nem contesta. Tacitamente aceita que se afirme que, no caso de escassez de ventiladores, os maiores de 80 anos, ou 75, ou 70…sejam excluídos, apenas em função da sua idade cronológica. Ah, sim, é porque têm uma expectativa de vida inferior a outros – é um argumento de conforto. Mas então as pessoas valem mais ou menos consoante o número médio de anos de vida de que dispõem… E não vos parecerá estranho, incoerente e contraditório que, ao abrigo do princípio ético da dignidade humana que proíbe a avaliação de cada um pelas suas características pessoais, como (mais uma vez) o género, a etnia, a religião, a orientação sexual, etc., seja afinal aceite que julguemos o valor de alguns pela sua idade? Será que, afinal, a dignidade tem idade ou caduca com a idade?
Somos todos plenamente pessoa em todos e cada um dos dias da nossa vida até ao último.
A minha expectativa é que a pandemia de hoje, ao ter descoberto e exposto a discriminação tácita, muda, consentida contra os idosos, possa amanhã ditar a recuperação do respeito, que nunca se deveria ter perdido, e se possível também o apreço, pelos mais idosos. O melhor, aliás, será começar já hoje: o modo como lidarmos com o alastrar da covid-19 nos lares de idosos vai definir-nos enquanto sociedade; a nossa percepção dos idosos reflecte quem somos.