Para os índios brasileiros, a destruição trazida pela covid-19 é uma tragédia conhecida

Já morreram três índios após terem sido infectados pelo coronavírus, incluindo um adolescente de 15 anos. Por todo o país, as aldeias estão a bloquear entradas e saídas, mas denunciam invasões e falta de apoio institucional.

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Índios yanomami durante operação contra o garimpo ilegal na Amazónia Reuters

Não foi há muito tempo que as epidemias que atingiam os povos indígenas brasileiros apareciam sob o disfarce de dádivas. Nos anos 1960 e 1970 era prática comum que fazendeiros ou garimpeiros doassem roupas e comida em caixotes infectados com o vírus da varíola e outras doenças altamente contagiosas para que os índios que viviam em terras cobiçadas as fossem buscar. Sem a imunidade dos brancos nem o acesso a cuidados de saúde, muitos morreram desta forma numa guerra pela terra em que tudo valia.

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Não foi há muito tempo que as epidemias que atingiam os povos indígenas brasileiros apareciam sob o disfarce de dádivas. Nos anos 1960 e 1970 era prática comum que fazendeiros ou garimpeiros doassem roupas e comida em caixotes infectados com o vírus da varíola e outras doenças altamente contagiosas para que os índios que viviam em terras cobiçadas as fossem buscar. Sem a imunidade dos brancos nem o acesso a cuidados de saúde, muitos morreram desta forma numa guerra pela terra em que tudo valia.

Numa altura em que o mundo enfrenta a pandemia do novo coronavírus, com um potencial destrutivo apenas comparável ao da gripe espanhola de 1918, para as comunidades indígenas as memórias de tempos mais recentes são reavivadas. “Temos recordações muito negativas no que toca a vírus e de como entraram nas terras indígenas”, diz ao PÚBLICO por telefone Dinaman Tuxá, um líder indígena do povo tuxá, que vive nas margens do Rio São Francisco na Bahia.

Dinaman tem 32 anos e não viveu os tempos mais dramáticos das epidemias que atingiram o seu povo, mas as histórias são passadas de geração em geração e os receios das doenças trazidas pelos brancos estão muito presentes. “Os meus avós sempre comentaram as estratégias de inserção de vírus, varíola, tuberculose. Estamos temerosos que esse vírus venha a ser utilizado dessa forma, para acederem aos nossos territórios e, principalmente, para tentar dizimar as nossas comunidades”, diz.

Nas últimas semanas, começaram a ser confirmados os primeiros casos de infecções pelo novo coronavírus entre indígenas. Na quinta-feira, um adolescente yanomami de 15 anos tornou-se na terceira vítima mortal entre as comunidades indígenas brasileiras, depois de ter passado 21 dias internado num hospital em Boa Vista, capital de Roraima. Segundo o médico Joel Gonzaga, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o índio tinha um historial clínico muito crítico, tendo já sido afectado por “doenças como desnutrição, anemia, malárias repetitivas”.

Fragilidades

Os 800 mil índios brasileiros constituem um grupo particularmente vulnerável à propagação da covid-19. A falta de acesso a cuidados de saúde é um dos principais factores de fragilidade. Muitas aldeias estão em locais remotos, a centenas de quilómetros, traduzidos em dias de viagem, de cidades com hospitais que dispõem de unidades de cuidados intensivos.

Entre as comunidades indígenas há também uma prevalência de doenças respiratórias superior à da população em geral e de doenças como a diabetes ou a hipertensão arterial – ambas condições clínicas que tornam a covid-19 mais agressiva –, fruto do crescente contacto com os centros urbanos e com os produtos alimentares industrializados.

Mas também os hábitos da vida em comunidade são problemáticos no quadro de uma pandemia como a que atinge agora o planeta. As casas das aldeias geralmente abrigam famílias inteiras que convivem num espaço confinado e a rotina é feita de momentos de proximidade física, seja com as crianças, seja com os mais idosos. “A proximidade física é uma condição existencial”, observa a antropóloga da Universidade de Brasília, Marcela Coelho de Souza, que há mais de duas décadas trabalha de perto com povos na região do Xingu. “É tão absurdo pedir-lhes que mantenham a distância como pedir-nos que não passemos a mão no cabelo”, explica ao PÚBLICO.

É um pouco isso que conta Alessandra Muduruku, que mora na aldeia Praia do Índio, nas margens do rio Tapajós, no Pará. Estuda Direito em Santarém, cidade a mais de 400 quilómetros, e por isso consegue comparar bem os hábitos dos dois mundos. “O branco, se uma pessoa pegar [o vírus], tem como se isolar, o índio não. Se um adoecer, todos querem visitar.”

Aldeias fechadas

Uma das principais estratégias para conter a propagação do coronavírus encontrada pelos povos indígenas foi o encerramento das suas aldeias e o bloqueio de entradas e saídas, uma espécie de quarentena auto-imposta. Desde o início de Março que tem sido essa a realidade na grande maioria das terras indígenas, de acordo com o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Antônio Eduardo de Oliveira, contactado pelo PÚBLICO. A partir dessa altura, o CIMI cessou as suas actividades no terreno e passou a apoiar os esforços de confinamento dos indígenas, recebendo diariamente informações de todo o país.

A solução está longe de ser perfeita. A extensão de muitas das terras indígenas não permite que se faça uma vigilância total de quem entra ou sai do perímetro. “Por mais que tenham tomado essa iniciativa existem pontos frágeis onde essa dinâmica não procedeu”, reconhece Oliveira. É isso que é relatado por Dinaman Tuxá na Bahia, que também decidiu fechar a sua aldeia onde vivem 1400 pessoas. No entanto, por ser praticamente colada a um centro urbano, “o acesso de pessoas não indígenas é constante”, diz o índio.

A falta de apoio institucional das autoridades locais também preocupa os índios brasileiros. Um dos casos mais graves ocorreu na terra dos tupinambá, no sul da Bahia, onde no início de Abril seis polícias decidiram romper as barreiras que tinham sido montadas pelos índios para se isolarem. A antropóloga do Instituto de Ciências Sociais, Susana Viegas, que fez trabalho de campo nesta região, diz ao PÚBLICO que nestes locais “a insegurança jurídica das áreas indígenas é muito maior”. “Em várias situações a polícia nega-se a dar protecção”, denuncia Oliveira, que justifica essa ausência com “a existência de interesses políticos e económicos”.

O perigo das invasões das terras indígenas continua presente, mesmo em tempo de pandemia. Na verdade, o período de auto-isolamento pode até provocar um aumento das actividades ilegais de garimpo e derrube de árvores, uma vez que a capacidade dos índios denunciarem esses crimes fica diminuída. “As acções de violência contra os povos indígenas muitas vezes só são paralisadas quando são feitas denúncias, seja pelos indígenas ou não-indígenas, e principalmente a nível internacional”, explica o secretário-executivo do CIMI. Em alguns locais isso já está a acontecer, como no território dos yanomami, onde se verificou um aumento de 3% da mineração ilegal, de acordo com imagens de satélite divulgadas esta semana pelo Instituto Socioambiental.

Segundo as informações obtidas pelo CIMI, desde o início do auto-isolamento das terras indígenas tem havido uma “paralisação momentânea” das invasões, mas Antônio Eduardo de Oliveira acredita que é algo que vá “durar pouco”. Nos tribunais correm acções sobre a propriedade de terras disputadas, muitas das quais deverão dar razão aos indígenas. “A partir do momento em que essas acções judiciais forem saindo e os índios forem ganhando, o outro lado vai-se movimentando”, prevê.

À espera de apoio

O isolamento das aldeias está a pôr em causa a subsistência de muitas comunidades, que se vêem privadas de realizar as suas actividades económicas. “O problema do rendimento é tanto maior quanto mais próximas são as comunidades das cidades, e portanto mais dependentes de produtos comercializados”, explica a antropóloga Marcela Coelho de Souza.

Na aldeia de Dinaman Tuxá, na Bahia, o bloqueio da aldeia está a ter um efeito “dramático” na escassez de alimentos. A actividade mais importante para os tuxá é a venda de artesanato que se reduziu praticamente a zero. “Não conseguimos sequer falar com os compradores”, lamenta.

Neste contexto, o apoio do Estado é visto por todos como fundamental. A chegada das cestas básicas é referida em todas as conversas, mas até agora, com quase um mês de isolamento, nada foi feito. A deputada federal Joênia Wapichana, a única parlamentar indígena em Brasília, tem mantido reuniões com os principais organismos públicos, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), para tentar acautelar esta situação.

Numa conferência de imprensa a que o PÚBLICO assistiu, a deputada disse que a Funai dispõe de “um plano de contingência para a distribuição de cestas básicas” pelas terras indígenas que deverá começar a ser posto em prática a partir da próxima semana.

Nas centenas de aldeias espalhadas pelo país, o momento é de resistência, mas também de enorme tensão. O perigo representado pela covid-19 para os índios desdobra-se em várias frentes: invasões, doenças, falta de alimentos. Como em vários outros momentos da História, os índios sentem-se postos de parte e deixados à sua sorte. A partir da sua aldeia nas margens do rio Tapajós, onde o hospital mais próximo está a 400 quilómetros de distância em estradas em mau estado, Alessandra Munduruku deixa a sua inquietação: “Se houver um ventilador para dez pessoas, quem é que vai escolher? Será que nós, indígenas, vamos ter um aparelho?”