Um chef, um cabrito e um folar transmontanos: eis as receitas de Páscoa de Marco Gomes
O cozinheiro do Oficina, que recorda as suas tradições pascais, ensina também como se faz um belo arroz de forno e ainda os bolinhos de leite da tradição transmontana. Para que fique mesmo em casa sem perder nada.
Para um transmontano é canja. Nascido e criado entre os pastos das serranias, a horta e os animais, Marco Gomes é um daqueles cozinheiros com alicerces bem assentes na origem das coisas. “Foi na lareira da minha avó que a curiosidade despertou a vontade pela cozinha. As panelas de ferro, a cebola a estrugir, os rojões a rugir, o sal a estalar”, são memórias em que assenta muita da arte que a técnica ajudou a refinar.
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Para um transmontano é canja. Nascido e criado entre os pastos das serranias, a horta e os animais, Marco Gomes é um daqueles cozinheiros com alicerces bem assentes na origem das coisas. “Foi na lareira da minha avó que a curiosidade despertou a vontade pela cozinha. As panelas de ferro, a cebola a estrugir, os rojões a rugir, o sal a estalar”, são memórias em que assenta muita da arte que a técnica ajudou a refinar.
Mas se há coisas em que sobra até apuro ao saber ancestral, uma delas é o cabrito da Páscoa. Além do mais, é uma marca de identidade, do carácter transmontano. Não que o chef ainda precise de “carregar às costas um cobertor de papa, um cabrito e as próprias lajes da lareira”, como descreveu Torga nos seus Diários, mas nota-se-lhe até um brilhozinho nos olhos, um afinar da doçura e prolongamento final do sotaque quando afloram essas memórias.
“O cabrito era sempre o pai que o escolhia. Íamos pelo monte, ter com o pastor. Apontava três ou quatro que depois levantava, um em cada mão amarrados pelas patas, para avaliar o peso. E logo ali era abatido”, relata.
Coisa banal para Marco Gomes, que desde a infância se embrenhou nesses rituais: patas pela zona das coxas bem presas entre os joelhos, corpo levantado pelo focinho com a mão esquerda, um golpe certeiro por baixo da orelha com o pequeno cutelo que todos trazem no bolso. Em segundos está feito ao abate. Um cordel e o arbusto mais próximo penduram-no por uma das pernas, o mesmo cutelo e mais uns minutos para que a pele e escalpe se dispam.
Tão simples que bastaram apenas sete minutos ao chef para, no Congresso dos Cozinheiros, em 2017, em Lisboa, subir ao palco e executar todo o ritual. Para espanto de muitos e horror de alguns outros.
Não foi preciso, no entanto, assim proceder desta vez, que a Fugas se encarregou de encomendar o chibinho à Cooperativa de Produtores de Cabrito de Raça Serrana, associando-se à campanha lançada nas redes sociais para o escoamento de produto que a pandemia corria o risco de bloquear. E que pelos visto resultou muito para além do esperado, criando por si outro problema.
A mensagem, para escoamento dos 700 a 800 amais do costume, era dirigida apenas a cozinheiros e restaurantes, mas a vontade de ajudar rapidamente se tornou vital nas redes sociais. Resultado: milhares de pedidos, capacidade de abate limitada, rateio, e muitas entregas agendadas já para depois da Páscoa.
Cabrito transmontano
A tempo, portanto, de seguir a receita que Marco Gomes cozinhou para a Fugas no seu restaurante Oficina, no Porto, para que, na segurança das respectivas casas, todos se possam saciar e cumprir a tradição. Numa semana em que o chef – em conjunto com Vasco Coelho dos Santos, do restaurante Euskalduna Studio – fazem também a foto de abertura de um artigo da revista Forbes dando conta da forma como os chefs portugueses estão a apoiar os profissionais de saúde na luta conta o vírus.
“Com produto certificado, os animais são pequenos, basta ter alguns cuidados na preparação e que seja bem limpo o bedum [gordura]”, diz Marco Gomes, contrariando “a mania” de que é necessário algum tempo em água e limão. “Isso é só para os animais grandes, gordos”, já que com os cabritinhos do leite, como é o cabrito transmontano, que tem certificação DOP, em regra não chega aos 6kg nem pode ultrapassar os três meses de idade. Ou seja, alimentam-se do leite materno e as carnes ainda não absorveram os sabores intensos, rústicos e herbáceos.
Importante mesmo é limpar a gordura das pernas e que seja retirada a “bola de gorduras”, uma fibra que meticulosamente retira entre a intersecção os músculos da perna, depois de um golpe que acompanha a linha do tecido muscular para lá chegar. Não é particularmente difícil, já que logo se destaca pela textura e o brilho da cor branca.
Além de cortar em pedaços, convém também partir os restantes ossos, de forma a que depois de cozinhado se possam separar as peças sem dificuldade. Para o forno, o ideal é o tabuleiro de barro e uma assadura lenta, sem exceder os 170/180º. Para que as carnes fiquem sempre bem cozidas, a separar do osso e absorvam todo o sabor da marinada. É fácil e basta seguir a receita (ao lado), que tal como muitas outras se encontra também no site e blogue do chef.
Arroz de miúdos no forno
É com grão carolino, claro está, o coração, fígado e pulmões que Marco Gomes faz o arroz de forno. Excelente, acreditem!
Tudo cortado em pequenas porções e com o cuidado extremo de separar intacta do fígado a bolsa de fel. Lava-se depois tudo muito bem em água fria, sendo que com tempo o ideal é mesmo que marinem de véspera em leite. “É impressionante ver como no final o leite está mesmo escuro”, destaca, para chamar a atenção para a importância da lavagem.
O refogado, forte, com muita cebola, começa apenas com os miúdos, que devem ficar muito bem cozinhados. A meio junta-se uma folha de louro, esmagada, e só já na parte final se acrescenta um pouco de alho picado.
Bem estufados os miúdos, o chef junta o arroz, envolve bem em todo o estufado durante algum tempo, tempera com um pouco de vinho branco e sal, e transfere para um caçoilo de barro negro que leva ao forno depois de acrescentar a água, já a ferver. Retirar do forno quando estiver cozido e a crosta tostada. Divinal pelas mãos do chef, mas não será muito complicado chegar em casa a um bom resultado. Mesmo à primeira, vale a pena arriscar.
Folar e bolinhos de leite
Já quanto ao folar, Marco Gomes habituou-se mesmo àqueles que faz a mãe, e, como é sabido, nestes casos não há igual. Mas deixa também a receita (ao lado) que é igualmente fácil de executar. E assim o mostrou.
A tradição manda que se use chouriça, salpicão, e carnes de porco, idealmente da mão fumada que vem da matança de Dezembro. Está, por altura da Páscoa, mais atempada que o presunto.
Enchidos às rodelas, carnes em pedaços, há que cuidar da massa, com empenho e genica para que fique bem elástica e consistente, devendo levedar pelo menos uma hora.
É também importante polvilhar com alguma farinha o fundo da forma, de maneira a que a massa depois não se agarre, e depois de montadas as camadas massajar o topo com um bom azeite.
É meter ao forno e aguardar pelo resultado.
O chef optou por uma temperatura de 180º e ao fim de 45 minutos um excelente resultado: fofo, crocante, sabores e gordura disseminados. Em caso de forma mais estreita – e folar mais alto – aconselha-se mais uns 15 minutos de forno.
Faltaram as rezas, que as mulheres de Trás-Os- Montes dizem ser fundamentais para o bom resultado, mas o chef ligou à mãe que logo nos ditou a “oração”, esclarecendo que é proferida depois de colocar tudo na forma e fazer o sinal da cruz: São Miguel te levede / São Vicente te acrescente / São João te faça bom pão / Em louvor da Virgem Maria, um pai-nosso e uma avé Maria.
À boleia da chamada, a mãe Maria Luísa explicou também à Fugas como se fazem os tradicionais bolinhos de leite. Uma dúzia de ovos, um quilo de açúcar, também 250g de manteiga derretida, outro tanto de azeite e um litro de leite.
Escacham-se os ovos, junta-se tudo bem misturado e acrescenta-se o sumo de três laranjas e três cálices de aguardente bagaceira. Envolve-se com um quilo de farinha, mais uma colher de sopa de fermento em pó e outra de café de bicarbonato.
Depois de bem amassada até ficar consistente e homogénea, a massa é distribuída pelo tabuleiro em pequenas porções com uma colher e polvilhada com açúcar. A tradição é que vá ao forno com o folar, mas apenas durante 15 minutos.
Outra particularidade é o costume de usarem “latas” (as tampas das latas) em vez de tabuleiro. Porquê? “Eu sei lá, já foi assim que a minha avó me ensinou”, dispara Maria Luísa. Talvez fosse mesmo uma forma de envolver as crianças na magia da Páscoa e gosto pela tradição.