Testemunho de um TI com baleia ao fundo
Um trabalhador independente não tem vínculo a quem o contrata e para receber subsídio de desemprego tem de ter mais de metade do rendimento proveniente de um mesmo cliente.
Chamem-me João.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Chamem-me João.
Sou trabalhador independente (TI), realidade laboral que, com a pandemia, ganhou alguma visibilidade, pela necessidade de alertar para as disparidades que nos encurralam, apesar de colocarmos igual empenho, profissionalismo e dedicação fiscal ao de qualquer outro trabalhador que tenha um patrão, um contrato, um rendimento assegurado quando a facturação atinge o zero. A natureza dos rendimentos de um TI oscila muito – num mês (ou mesmo num trimestre) pode ser de milhares de euros, noutro pode ser nulo.
Vamos por partes. Sou jornalista. Fiz o meu estágio no Diário de Notícias, em 1993. Em Janeiro de 1997, entrei para os quadros do vespertino A Capital. Fui fazendo o meu percurso na profissão, crescendo nela, até assumir a direcção da revista mensal Os Meus Livros, no final de 2004, até 2012. Ou seja, de 1993 a 2012 fiz, única e exclusivamente, jornalismo, passando pelos diferentes escalões profissionais, de estagiário a director.
Com o fecho definitivo da revista, em 2012, num meio profissional completamente distinto daquele em que me formei, não conseguindo colocação numa redacção, tinha dois caminhos. Evitando render-me a um emprego despersonalizado cuja parca remuneração seria acompanhada por uma óbvia frustração, optei por me aventurar como TI, não apenas como jornalista, mas encontrando nos ensinamentos que uma profissão com essa grandeza transporta fórmulas para conjugar comunicação e cultura. Como diriam alguns gestores, fiz um spin-off da minha actividade.
Nestes oito anos, em paralelo com algumas colaborações na imprensa escrita, criei ciclos com escritores (como faço há anos com a autarquia de Santiago do Cacém, e fiz durante dois anos e meio na Livraria Almedina); entrevistas de vida ao vivo (durante três anos, com a autarquia de Almada); moderei inúmeras conversas em festivais literários (Ovar, Chaves, Sabrosa…) e ciclos diversos (como o Com Todas as Letras, na Sociedade Portuguesa de Autores); desenhei formatos para levar a BD ou a poesia a crianças e jovens (em bibliotecas e escolas); concebi o projecto Literatura Língua Comum, para o Programa Escolhas; levei “25 Músicas para o 25 de Abril” a bibliotecas e escolas; dinamizei formação sobre aspectos menos comerciais da História da Música, integrei colectivos que juntam a palavra dita e a música (em torno de Marquês de Sade, Jorge Luis Borges, Fernando Pessoa ou Miguel Torga).
Destaco, claro, o festival Livros a Oeste, organizado pela Câmara Municipal da Lourinhã desde 2012, para o qual faço a programação (manhãs, tardes e noites) e moderação das mesas. Este ano, seria de 12 a 18 de Maio, por isso, o pico de adrenalina que costuma ser essa semana para toda a equipa será em 2020 substituído pela chegada do pico da pandemia, a crer em algumas previsões.
Olhando para todos estes projectos, por vezes, penso: jornalista? Divulgador? Artista? Programador? Dinamizador? Empreendedor? Uma coisa é certa: TI. Tudo a recibos verdes. E tudo isto impossível de levar a cabo neste momento.
O medo da incerteza a cada mês e a procura constante de novos clientes (new business, como dizem na Economia). O salto sem rede. Um TI não tem qualquer vínculo a quem o contrata e, para poder receber um subsídio de desemprego, tem de ter mais de metade do seu rendimento proveniente de um mesmo cliente. É fácil de entender a raridade da situação (pensem num electricista, num canalizador, no senhor que chamamos para pintar a sala ou arranjar o esquentador).
A primeira frase deste artigo não é inocente; alguns terão reconhecido o início de Moby Dick, a odisseia do Capitão Ahab, navegando enlouquecido atrás da baleia branca que lhe levou a perna. Para que não nos afundemos na voracidade de ultrapassar esta conjuntura, é preciso olhar para os TI com clareza e entender que alguém que durante três meses passa um recibo de 400 euros não sobrevive nos três seguintes com um terço disso, depois de a baleia Covid lhe ter mastigado ambas as pernas. Como diria o grande Mário de Carvalho, era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto…