Covid-19: Nem todos os presos vão querer sair porque “não têm para onde ir”
Parlamento debate esta quarta-feira a proposta de lei do Governo para libertar cerca de 1200 presos. Presidente do sindicato dos procuradores diz que “o perdão é cego” ao admitir reduções para presos que estejam a dois anos (ou menos) de terminarem a pena.
Ao ler a proposta de lei do Governo para conceder um perdão a presos em situações excepcionais e assim prevenir um contágio em larga escala nas prisões, a primeira questão que a investigadora e professora do ISCTE, Catarina Frois, coloca é: “Afinal por que é que há pessoas na prisão com uma pena inferior ou igual a dois anos?”
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Ao ler a proposta de lei do Governo para conceder um perdão a presos em situações excepcionais e assim prevenir um contágio em larga escala nas prisões, a primeira questão que a investigadora e professora do ISCTE, Catarina Frois, coloca é: “Afinal por que é que há pessoas na prisão com uma pena inferior ou igual a dois anos?”
Além de prever um indulto para reclusos mais vulneráveis por doença ou idade avançada, o documento de dez páginas concede um perdão em penas inferiores a dois anos ou a presos que estejam a menos de dois anos de atingir o fim da pena.
Em qualquer caso, deixa de fora todos os que praticaram crimes de violência física ou sexual, como o homicídio, o abuso sexual, a violação ou a violência doméstica, entre outros, bem como o tráfico de droga, a corrupção ou crimes praticados por políticos ou representantes do Estado em exercício de funções.
Sobre o indulto dirigido aos presos com mais de 65 anos ou portadoras de doenças, que deverá vir a ser proposto por representantes dos serviços prisionais – directores das prisões ou o director-geral Rómulo Mateus – Catarina Frois diz que também aqui, como no perdão, a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, fez bem em realçar o facto de o próprio preso ter que autorizar uma saída.
“Estas são pessoas muito vulneráveis, que muitas das vezes estiveram presas mais do que uma vez ou muitos anos e que não têm rede de apoio” fora da prisão, diz a professora auxiliar do departamento de Antropologia do ISCTE.
Por isso, prevê que nem todos os presos abrangidos pelas medidas de clemência, se estas vierem a ser aprovadas pelo Parlamento, vão querer sair porque “não têm para onde ir”.
Nestes casos, também não espera que muito tempo possa ser dedicado pelas equipas de reinserção a encontrar soluções para o preso em liberdade.
A proposta de lei vai ser debatida no Parlamento nesta quarta-feira, um dia depois de o Conselho da Europa ter publicado as estatísticas penais anuais relativas a 2018 e até Janeiro de 2019 que mais uma vez colocam Portugal no topo dos países com penas mais longas.
Em 2018, enquanto a média do tempo de prisão dos 47 países do Conselho da Europa rondava os 10,6 meses, o tempo médio passado na prisão em Portugal era de 32,4 meses, ou seja três vezes a duração na Europa.
Os crimes dos presos
Nas tabelas deste relatório sobre crimes praticados pelos presos e respectiva percentagem relativamente ao total, os roubos (que pressupõem uma acção violenta) e os furtos, juntos, ocupam a parcela mais importante, com 28,4% da população prisional em 2018.
Os 837 homicídios e tentativas de homicídio contabilizados representam 7,8% de todos os crimes cometidos pela população prisional – o que corresponde a um pouco mais de metade da média europeia (13,6%). Agressões de vários tipos e violação levaram 775 pessoas a cumprir pena no sistema prisional (7,3%).
Nestes dados destacam-se os 15,5% do total de presos na cadeia por crimes relacionados com tráfico de droga. Não existem dados disponíveis para os crimes económico-financeiros, mas todos os delitos relacionados com a condução na estrada chegam aos 7,8% (828 pessoas), acima dos 4,6% da média na Europa.
Apanhado 11 vezes
“Há pessoas presas por conduzirem sem carta”, reforça Catarina Frois. “Estão presas, cometeram crimes. Não estamos a tirar a validade da condenação, temos é que questionar a validade da sentença que lhes foi atribuída.”
Até porque, concede, no seu trabalho de investigação nas prisões que já resultou em várias publicações e livros, entrevistou um homem que tinha sido apanhado 11 vezes sem carta, o que significa que a prisão não foi a primeira opção do tribunal. Há situações em que a prisão é a última das decisões, depois de muitas tomadas num mesmo caso.
Seja como for, diz a investigadora, durante vários anos em que os juízes favoreceram a não adopção de outras medidas em alternativa à prisão” quando afinal “há crimes que poderiam ter sido substituídos por multa, por prisão domiciliária, ou até prisão com pulseira electrónica mas que permitisse às pessoas irem trabalhar.
Integração dos ex-reclusos
O presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), António Ventinhas, diz que este pacote de medidas coloca questões relacionadas com a integração dos ex-reclusos que poderão vir a estar relacionadas com a segurança ou a falta dela.
António Ventinhas concorda que sejam abrangidos os reclusos que cumpram penas inferiores a dois anos, bem como aqueles que vejam a saída precária de três ou cinco dias prolongada por 45 dias e, se tudo correr bem, poder ser-lhe concedida a liberdade condicional, já que as saídas precárias são a primeira condição sem a qual não é concedida a liberdade condicional ao preso.
Porém, considera que “o perdão é cego” ao admitir reduções para presos que estejam a dois anos (ou menos) de terminarem a pena. “Uma coisa é perdoar penas inferiores a dois anos. Outra coisa é perdoar dois anos no fim de uma pena que já pode ter alguma gravidade” se se tratar de uma condenação a sete ou oito anos por vários roubos (crimes que estariam abrangidos pelo perdão), exemplifica.
Competência indefinida
Outra questão em aberto e que preocupa vários sectores da Justiça é saber qual o tribunal com competência para analisar os casos de perdão – serão os tribunais da condenação ou os tribunais de execução de penas?
A expectativa entre os magistrados é que esta competência fique esclarecida no diploma que possa vir a ser aprovado pelos deputados. Porque se não ficar consignada na lei, haverá espaço a conflitos de competência que podem atrasar processos quando a intenção é agilizá-los.