Covid-19: os animais contagiam ou podem ser infectados? O (pouco) que se sabe até agora
Apesar de algumas espécies de animais de companhia poderem ser infectadas com o Sars-CoV-2, não passam de figurantes num vírus maioritariamente transmitido de humano para humano. O papel principal deles pode estar na experimentação laboratorial para se conseguir uma vacina. E, em casa, como uma arma contra o stress do isolamento.
Enquanto os cientistas caçam o animal selvagem que foi o hospedeiro intermediário do novo coronavírus, o Sars-CoV-2 parece ter “saltado” dos humanos para os animais de companhia. Há testes feitos em gatos, cães e um tigre com resultados positivos. Mas os resultados obtidos na Bélgica, Hong Kong, Nova Iorque e em estudos experimentais na China deixam “muitas dúvidas” — o que de resto não falta num vírus descoberto há três meses.
“A partir do momento que é um vírus que já transitou a barreira de espécies, é perfeitamente plausível que tenha a capacidade de o fazer para outras espécies, incluindo os nossos animais de companhia”, diz Jorge Ribeiro, director do Hospital Veterinário da Universidade do Porto. “O que não se conseguiu provar é que eles desenvolvem a doença e, segundo, que sejam contaminantes.”
O que sabemos com certeza é que os casos globais de humanos infectados com o novo coronavírus ultrapassaram a marca de um milhão no início de Abril, segundo dados da Universidade de Johns Hopkins. Ao mesmo tempo, desde que o Sars-CoV-2 foi identificado em Wuhan, em Dezembro de 2019, contam-se pelos dedos das mãos os animais com testes que deram positivo para o vírus causador da covid-19. São ainda menos os que, depois de infectados, apresentaram sintomas que podem estar relacionados com a doença. E há zero evidências de que o novo coronavírus seja transmissível de animais de companhia para pessoas.
Já o caminho inverso “não é ainda claro”, diz o médico veterinário Jorge Ribeiro. “Não houve sinais clínicos, nem moderados nem severos, nem mortes nos animais reportados como possivelmente infectados. Ou seja, o vírus não parece replicar-se nem ser nefasto num organismo animal como é nos humanos. O que pode ser sugestivo de que eles não passam de hospedeiros erráticos”, resume Patrícia Pimenta.
A médica veterinária, que se dedica à medicina de gatos em Edimburgo, é crítica do diagnóstico feito à gata na Bélgica, um dos únicos relatos de sintomas covid-19 em animais de companhia de pessoas infectadas, que incluíam anorexia (perda de apetite), vómito, diarreia, tosse e taquipneia (respiração acelerada e superficial). “O diagnóstico foi obtido através de amostras de fezes e vómito colhidas pela tutora em casa. Nestas amostras, foram (à semelhança dos cães de Hong Kong) encontrados fragmentos do vírus”, diz, com base no relatório elaborado pelo comité científico belga. “Isto não demonstra que o vírus estava vivo e activo no organismo da gata e muito menos permite deduzir que os sintomas sejam atribuídos a esta infecção em particular.”
No consultório, tem recebido gatos doentes: com cistites provocadas pelo stress de “terem os donos a olhar para eles o dia todo, normalmente com crianças aos berros a tentar agarrá-los”, conta. “As pessoas saudáveis não devem quebrar as rotinas dos animais de companhia porque isso acaba por ter um impacto muito maior em doenças clínicas neles.”
“Nada nos diz que os animais são um risco”, tranquiliza Jorge Cid, bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários (OMV). A comunicação é reiterada pela Organização Mundial da Saúde, que mantém que a transmissão é feita de humano para humano, maioritariamente através de gotículas nos espirros ou tosse de uma pessoa infectada, ou de superfícies contaminadas.
O bastonário espera “que as pessoas não abandonem os animais de companhia nesta altura” por culpa de receios infundados, até porque eles podem ser uma arma contra a ansiedade e o stress do isolamento — e isso, já há estudos que comprovam.
Ainda assim, “e como medida exclusivamente de prevenção”, a OMV e outras associações de médicos veterinários internacionais aconselham os tutores que estejam infectados a “absterem-se de contactos mais íntimos com os animais de companhia”, como deixá-los lamber a cara e as mãos, que devem ser frequentemente lavadas com água e sabão, durante 20 segundos.
“É muito angustiante para as pessoas que nós não tenhamos certezas. Mas temos duas hipóteses perante informação limitada: ou arriscamos fazer uma vida normal e corremos o risco de que algo corra mal ou tomamos precauções”, alerta o médico veterinário Jorge Ribeiro, que aconselha as pessoas infectadas com este coronavírus a comportarem-se à beira de animais com os mesmos cuidados que têm socialmente, respeitando, por exemplo, a distância de segurança.
Os felinos e cães anunciados como infectados conviviam estreitamente com pessoas doentes com covid-19. Informações oficiais e públicas dão conta de dois cães e um gato em Hong Kong, um gato na Bélgica e, mais recentemente, um tigre-malaio fêmea em cativeiro no Zoo do Bronx, que se suspeita ter sido infectado por um cuidador assintomático. Apenas o gato e o tigre demonstraram sintomas ligeiros que podem ser associados à covid-19, como dificuldades respiratórias e tosse seca persistente. É esperado que os dois animais recuperem, segundo o que disseram médicos veterinários locais. No zoo em Nova Iorque, mais seis tigres e leões apresentaram sintomas, mas não foram testados.
Testar animais está longe de ser uma prioridade na crise da covid-19. “Do ponto de vista da investigação, permitir-nos-ia caracterizar melhor a doença. Mas, do ponto de vista sanitário, faz muito mais sentido concentrar os nossos esforços em testar pessoas, porque são o principal veículo de transmissão. É muito mais fácil uma pessoa contaminar outra do que um animal contaminar um humano. Esse deve ser o principal esforço, reduzir o risco de transmissão entre humanos.”
Gatos podem infectar outros gatos, diz um estudo (ainda por rever)
O novo coronavírus “replica-se mal em cães, porcos, galinhas e patos, mas de forma eficiente em furões e gatos”, que podem infectar-se uns aos outros. São estas as conclusões de uma pré-publicação de um estudo do Instituto de Investigação Veterinária de Harbin, na China, amplificado em jornais do mundo todo. Mas ainda sem ter passado pela revisão de pares, a pré-publicação “não deve ser noticiada como informação estabelecida”, alerta o bioRxiv, onde o relatório foi publicado online.
Os resultados foram obtidos em laboratório, depois de cientistas introduzirem doses elevadas de Sars-CoV-2 no nariz de cinco gatos domésticos — e não através de interacções normais entre pessoas e os seus animais de companhia, alerta Patrícia Pimenta e outros investigadores críticos do relatório.
Depois, três dos felinos infectados foram postos em jaulas próximas de outros três gatos não infectados. Num deles, a equipa encontrou RNA viral, o que sugere, escrevem, que o gato contraiu o vírus através de gotículas emanadas pelos outros gatos infectados propositadamente. O estudo não revela a disposição das jaulas.
“A vigilância do Sars-CoV-2 em gatos deve ser considerada nos esforços para eliminar a covid-19 em humanos”, escreveram os autores no projecto do artigo científico, liderado por um virologista chinês, Bu Zhigao. No entanto, nenhum dos animais demonstrou sintomas e apenas um dos gatos expostos foi infectado, o que sugere que a doença “não deverá ser altamente contagiosa” nestes animais, nem eles são um factor importante a ter em conta na disseminação do vírus. “Em veterinária estamos habituados a lidar com surtos de doenças infecto-contagiosas muito mais contagiosas do que o actual coronavírus parece [ser]”, diz a médica veterinária. “Isto são relatos raríssimos”, repete.
Os gatos e furões também foram modelos de experimentação no Sars-Cov-1, lembra Patrícia Pimenta, “apesar de terem desenvolvido apenas sintomas moderados”. Ainda assim, tal como agora, não ficou provado que os animais segregassem quantidades de vírus suficientes para transmiti-lo a pessoas.
As descobertas científicas até agora sugerem que nenhuma destas espécies tem um papel na epidemiologia da covid-19. Quando muito, podem ser actores usados na descoberta de um tratamento ou vacina, diz Patrícia. “O interesse da inoculação é usar experimentação animal para termos mais recursos e resultados para a medicina humana. Acho que essa é a principal mensagem a reter.”
Os furões, por agora, parecem ser candidatos ao papel principal. Vários laboratórios já começaram a experimentar com estes mamíferos carnívoros que têm o estatuto de animal de companhia em Portugal e são susceptíveis à gripe humana, por exemplo.
Cientistas da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, descobriram que um furão exposto a partículas do novo coronavírus desenvolveu febre alta, o que pode ser considerado um avanço para testar vacinas em animais. Em situações normais, a equipa começaria a trabalhar num artigo científico, noticia o The New York Times. Mas não vivemos circunstâncias normais e, em duas horas, a descoberta estava a ser partilhada com cientistas de todo o mundo numa conferência da Organização Mundial da Saúde.
Uma nota de optimismo para como o mundo faz ciência em conjunto, mas que “pode estar a levar a conclusões erradas” junto do público em geral. “Eu acho que a comunidade científica está tão desesperada por ter avanços em potenciais tratamentos e vacinas, e ainda por perceber como o vírus se comporta, que está a facilitar muito a publicação de qualquer relatório”, defende Patrícia Pimenta.
“O abandono maciço pode contribuir muito mais para problemas de saúde pública no futuro”, alerta. “E quer o cão quer o gato podem ter um impacto muito mais positivo do que negativo, nestes dias.”