Hora e meia de Godard em directo: “O cinema é um antibiótico”
O cineasta fez uma aparição no Instagram, como protagonista de uma masterclass organizada pela Escola Cantonal de Arte de Lausanne. Falou-se de cinema, de autores, de fotografia, de medicina, até de um próximo filme – de tudo, menos do vírus que era suposto ser o mote.
“O cinema é um pouco um antibiótico” é mais um daqueles epigramas de que sabemos que Jean-Luc Godard tanto gosta, mas esperar a partir daí que o realizador se debruçasse sobre o novo coronavírus e os seus efeitos talvez fosse optimismo de mais. A epidemia era de facto o “mote” anunciado da conversa do cineasta suíço com Lionel Baier, realizador e professor da Escola Cantonal de Arte de Lausanne, que foi transmitida em directo ao início desta tarde na rede social Instagram. Só que, como Godard diria em resposta a uma pergunta enviada por um estudante, “ainda é cedo” para perceber de que modo ela vai entrar no seu cinema.
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“O cinema é um pouco um antibiótico” é mais um daqueles epigramas de que sabemos que Jean-Luc Godard tanto gosta, mas esperar a partir daí que o realizador se debruçasse sobre o novo coronavírus e os seus efeitos talvez fosse optimismo de mais. A epidemia era de facto o “mote” anunciado da conversa do cineasta suíço com Lionel Baier, realizador e professor da Escola Cantonal de Arte de Lausanne, que foi transmitida em directo ao início desta tarde na rede social Instagram. Só que, como Godard diria em resposta a uma pergunta enviada por um estudante, “ainda é cedo” para perceber de que modo ela vai entrar no seu cinema.
Sim, O Livro de Imagem (2018) tinha a aura de testamento que todos lhe atribuímos, mas o encontro de Baier (socialmente distanciado e de máscara cirúrgica) com Godard na sua casa de Rolle, testemunhado – à distância – pelo cúmplice Fabrice Aragno (também de máscara cirúrgica), apanhou o realizador a trabalhar no argumento de um novo filme. Que será inspirado pela música, mas sobre o qual não há ainda muito para revelar – apenas os marcadores e as folhas, quase “objectos de pintura”, que são os “utensílios” de trabalho. Enquanto isso, os materiais de base de O Livro de Imagem têm dado origem a uma série de instalações e exposições, a próxima das quais decorrerá em Nyon, na Suíça, a convite do festival Visions du Réel, e permitirá ao visitante construir a sua própria versão do filme – de que modo e em que moldes saber-se-á posteriormente, visto que o festival vai decorrer inteiramente online.
Aceso o charuto que fumaria durante os quase 90 minutos de uma conversa em que usou a espaços o seu iPhone (e referindo a sua preferência pelos aparelhos da Apple…), Godard não deu verdadeiramente uma lição de cinema nem falou directamente do vírus. Falou de actores – por exemplo de Roxy, o cão que norteava Adeus à Linguagem (2015) e que fazia o que bem entendia perante a câmara, ou da inocência que via nos figurantes e que já não conseguia encontrar nas vedetas.
Falou de médicos – do seu pai em particular, e da sensação de que os profissionais da medicina que descobrem curas, bacilos ou vírus são acima de tudo aventureiros, investigadores à procura num telescópio, num microscópio, em desenhos, e que “só depois de encontrar regressam à linguagem”. Falou da semelhança com os cineastas, que “têm também de ser um pouco polivalentes”; e do prazer que partilhava com François Truffaut dos livros “de inquérito”, de investigação, jornalísticos ou policiais.
Foi então que falou do “cinema como antibiótico”, ou antes, do cinema como algo que está “ao lado, por cima, por baixo”, um ponto de vista descentrado sobre a realidade. “Se eu disser a um médico que foi preciso a Segunda Guerra Mundial para descobrir a penicilina, ele dir-me-á que é uma boutade, é uma daquelas coisas que o Godard diz, e pronto, fica tudo por aí” – quando foi a necessidade de produzir o antibiótico em grandes quantidades para salvar vidas no campo de batalha que levou a um intensivo esforço de estabilização deste medicamento.
O cinema, cada um à sua maneira
É estranho ver Godard a falar disto no Instagram, com coraçõezinhos e mensagens por vezes completamente desfasadas a surgirem por baixo da sua imagem. O fenómeno não é novo – recordemos como a conferência de imprensa em que apresentou a estreia de O Livro de Imagem em Cannes foi feita por iPhone a partir da sua casa… – mas não deixa de ser peculiar para alguém que diz coisas como “As redes sociais? Não sei o que isso é”. Que vê as notícias na televisão, “onde é suposto vê-las”, e que faz os seus filmes em casa, numa lógica de colagem de citações – filmes, livros, quadros, música.
Sintomático é quando Godard fala dos seus tempos de Nouvelle Vague, e diz: “Íamos todos muito ao cinema, cada um à sua maneira”: “O [Jacques] Rivette era capaz de ficar a tarde toda no cinema a rever um filme quatro vezes de seguida; eu, por exemplo, revia bocados de filmes, começos, finais.” Um método que Baier acha estar muito próximo do modo como os estudantes de cinema, hoje, olham para os filmes. “Sim, é verdade, via muito as coisas aos pedaços, mas é preciso pensar ainda assim naquilo que estamos a ver e revê-lo quando é preciso.”
E Godard, aos 89 anos, tem saudades desses tempos? Tem saudades, sim, mas sobretudo das pessoas, de conversar sobre cinema com Truffaut, Rivette, [Eric] Rohmer – as zangas e os afastamentos de Godard são célebres, mas ele é hoje o único mestre ainda vivo da geração que lançou a “política dos autores”. “Defendíamos o Jean Rouch do mesmo modo que defendíamos o Hitchcock ou o D. W. Griffith, e isso vinha do Henri Langlois, director da Cinemateca Francesa. Ele não mostrava os filmes por serem de realizadores conhecidos ou por serem filmes famosos, mas sim porque os filmes eram aquilo que eram.”
A ideia do autor é uma ideia de estatuto, inspirada por Beaumarchais, que queria ver os dramaturgos pagos ao mesmo nível dos actores, mas a palavra nunca foi a ideal – Godard diz que o francês metteur en scène, literalmente “encenador”, é melhor mas “um bocadinho comprida”, e que o inglês director seria o ideal. “Só que três quartos dos directores não o são verdadeiramente.” Por isso – por três quartos daqueles que são entendidos como autores não o serem –, Godard não concordou sempre com os seus colegas: “Para mim só há um filme onde Jacques Becker foi um autor, e esse filme é O Último Golpe. Chabrol, por exemplo, nunca foi um autor.”
Enigmático, epigramático, cansado, atento, Godard foi Godard perante uma audiência numericamente pequena (a contagem de espectadores acompanhando em directo a conversa nunca ultrapassou os quatro milhares) mas que vai, certamente, multiplicar-se agora viralmente. Afinal, o mestre botou palavra, e não é um mestre qualquer: é Jean-Luc Godard, que nunca deixou de andar à procura de outras coisas. Não ficámos a saber se as encontrou, mas confirmámos que continua a procurá-las. Afinal, “o cinema é um antibiótico”.
A conversa de Jean-Luc Godard com Lionel Baier pode ainda ser parcialmente vista no Instagram da Escola Cantonal de Arte de Lausanne @ecal_ch