O inimigo dentro deste crânio

Ainda que o vírus nos possa dar medo de morrer ou de perder algum familiar, e é um medo totalmente legítimo, este isolamento está a confrontar-nos com a presença constante de nós mesmos. Algo a que, muito provavelmente, nenhum de nós estava habituado.

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Anshu A/Unsplash

Por causa de uma investigação que não vem agora ao caso, tropecei recentemente num livro que nos propõe uma teoria algo bizarra: tudo o que fazemos é uma manifestação subconsciente da nossa necessidade de gestão perante o terror da morte. Isto é, os nossos sistemas sociais, políticos e económicos, mas também a nossa necessidade de lazer e socialização, não são mais do que uma distracção para nos esquecermos de que vamos morrer. O livro chama-se The Worm at the Core e é de três psicólogos norte-americanos: Sheldon Solomon, Jeff Greenberg e Tom Pyszczynski. Confesso que achei a teoria atrevida. Exagerada, até. Tive dificuldades em dar-lhe crédito, por mais que o arrojo da ideia me agradasse. Depois, chegou a covid-19 e o isolamento obrigatório. Hoje, isolado e sozinho em casa há muitos dias, a Teoria da Gestão do Terror faz mais sentido do que nunca.

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Por causa de uma investigação que não vem agora ao caso, tropecei recentemente num livro que nos propõe uma teoria algo bizarra: tudo o que fazemos é uma manifestação subconsciente da nossa necessidade de gestão perante o terror da morte. Isto é, os nossos sistemas sociais, políticos e económicos, mas também a nossa necessidade de lazer e socialização, não são mais do que uma distracção para nos esquecermos de que vamos morrer. O livro chama-se The Worm at the Core e é de três psicólogos norte-americanos: Sheldon Solomon, Jeff Greenberg e Tom Pyszczynski. Confesso que achei a teoria atrevida. Exagerada, até. Tive dificuldades em dar-lhe crédito, por mais que o arrojo da ideia me agradasse. Depois, chegou a covid-19 e o isolamento obrigatório. Hoje, isolado e sozinho em casa há muitos dias, a Teoria da Gestão do Terror faz mais sentido do que nunca.

Não quero ser mal entendido: ainda que o vírus nos possa dar medo de morrer ou de perder algum familiar, e é um medo totalmente legítimo, este isolamento está a confrontar-nos com a presença constante de nós mesmos. Algo a que, muito provavelmente, nenhum de nós estava habituado. Pior: está a eliminar-nos as distracções e a colocar-nos perante o tal medo, consciente ou subconsciente, de que a nossa existência é, afinal, de uma irrelevância atroz. (É importante que não nos deixemos cair no engodo: por mais irrelevantes que sejamos num plano universal, há pessoas que se preocupam connosco e a quem acrescentamos valor, por mais que não o saibamos, e não há muitas coisas mais relevantes do que essa.)

Dantes, sempre havia rotinas, problemas criados por outras pessoas que nos pareciam o fim do mundo em cuecas, preocupações que, afinal, não eram nada de especial. E agora, confinados a um espaço exíguo, com tempo de sol e ar muito restrito, com a ilusão de que já chegámos ao fim da Netflix e da HBO e do YouTube e das estantes mais carregadas de livros, com a ilusão de que já calcorreámos sete vezes as receitas do Henrique Sá Pessoa, somos confrontados com um espelho. Somos confrontados com o que de pior guardamos dentro do crânio. Temos de lidar com a prisão, com nossa própria convivência. (E, pior ainda, segundo tenho ouvido, quando tem de se partilhar essa convivência com uns filhos que parecem ter encomendado às escondidas um carregamento de coca ao próprio El Chapo.)

As mudanças de hábitos, quer queiramos, quer não, transtornam os nossos processos fisiológicos. O stress afecta-nos de uma forma monstruosa, deixa-nos confusos, perdidos. O teletrabalho ainda pode extenuar-nos, embora envolva novíssimos ritmos, mas não há cansaço que nos queira dar sono. Porque também não há amanhã que nos queira fazer acordar. Isto já para não falar de outros ruídos, como os grupos de WhatsApp, que não se calam com as notícias do apocalipse, quando a tranquilidade é mais do que necessária em tempos como estes. Desliguem as notificações, se for preciso.

Há dias, o escritor Bruno Vieira Amaral recordava na sua conta de Facebook que a batalha deve ser combatida em várias frentes. Há um caos mais do que compreensível na saúde, e temos de estar gratos a todos os profissionais de saúde, mas também aos responsáveis políticos, por estarem a gerir esta hecatombe da melhor forma que lhes é possível; há um pânico bastante fundamentado (mas também contrariado por outras vozes mais optimistas) de que a economia vai sofrer muitíssimo com tudo isto, o que não ajuda à ansiedade; mas boa parte da luta também se faz dentro das quatro paredes de cada um de nós, estejamos sós ou acompanhados.

A depressão e a ansiedade estão mais perto do que nunca – eu que o diga, os ataques de pânico têm sido bastante comuns ao longo dos últimos dias, apesar de ter passado boa parte da quarentena sem sentir diferenças notórias e até uma melhoria no desempenho profissional – e precisamos tomar conta uns dos outros, mesmo que tenhamos de o fazer à distância.

Não tenham receio de conversar com um amigo, de fazer uma videochamada durante um jantar, de desabafar sobre tudo o que estão a sentir e a viver. Não tenham receio de mandar mensagem a um contacto do Facebook com quem nunca falaram antes, às vezes é melhor conversar com um desconhecido. Não tenham receio de pedir auxílio a um profissional – vão por mim, a minha terapeuta mudou-me a vida. A vossa pró-actividade não vai eliminar a ameaça do vírus, mas vai fazer-vos sentir mais aliviados. E isso já é tanto.