Espinho acolhe pessoas sem abrigo no parque de campismo

“Comparar isto com o que eu tinha é o mesmo que comparar a rua com um hotel”, diz Américo Fernandes, uma das 15 pessoas que fizeram check-in na estrutura montada pelo Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo de Espinho.

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Américo Fernandes precipita-se para a entrada do parque de campismo de Espinho. Atrás do homem magro, de calças justas, cabelo espetado, bengala na mão, avistam-se duas linhas de tendas, cobertura de plástico, num fundo verde, primaveril. Junto a uma delas, um homem de calções e óculos escuros. Assim, ao sol, numa cadeira de plástico, parece um turista, mas veste-se com os restos alheios e caça moedas na rua, como Américo.

Perante a pandemia de covid-19, o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) de Espinho ainda explorou possibilidades no sector hoteleiro. Abordou um hotel, outro e outro. Ouviu não, não e não. “Nem chegavam a fazer um preço”, recorda Marília Costa, coordenadora da equipa de rua do Centro Social de Paramos, a entidade que em parceria com a autarquia coordena o NPISA. “Estávamos a perder tempo.” Havia que encontrar uma solução rápida e eficaz. No debate surgiu o Parque Municipal de Campismo.

Mobilizaram-se várias entidades para proteger um dos grupos mais vulneráveis do município. Os escuteiros de Espinho e de Anta asseguraram tendas, a delegação da Cruz Vermelha estrados, colchões, lençóis, cobertores, a paróquia refeições, a equipa de rua do Centro Social metadona, cuidados de enfermagem, apoio psicossocial. Já ali havia vigilante, recepcionista, empregada de limpeza. Há sempre alguém do NPISA, ou a interlocutora da autarquia, Anabela Lourenço, ou a equipa de rua do Centro Social de Paramos.

Os primeiros 15 

“Comparar isto com o que eu tinha é o mesmo que comparar a rua com um hotel”, diz Américo, o homem que se precipitara para a entrada para receber a sua metadona, transformado agora em guia. Pernoitava numa fábrica devoluta, na Rua 20, perto da feira de Espinho.

Fácil imaginar o frio, o desconforto, o receio. “Estava da parte de fora. Tem o alpendrezito e o muro. A estrada era logo ali. Foi o sítio que eu encontrei. Antigamente, dava para entrar nas casas abandonadas. Agora, estão todas vedadas.” O lixo amontoara-se lá dentro. De noite, formigas, aranhas, mosquitos, qualquer bicho lhe podia percorrer o rosto. “A sorte é que havia muito gato e onde há gato não há rato.”

Aos 53 anos, não tinha por hábito ir aos balneários públicos, como o novo vizinho, Manuel Vieira, que dormia no anexo de uma pessoa amiga, sem água nem luz. “Ia às bombas buscar dois garrafões de água. Lavava-me por maior. Com esta pandemia, já nem dá para ir fazer as necessidades e trazer água.” Mesmo que fosse ao balneário, encontraria as portas fechadas. Quase todas as portas da cidade estão fechadas.

As tendas foram montadas a pelo menos dois metros umas das outras para permitir auto-isolamento. Espaços comuns são limpos a cada utilização. Só entram duas pessoas de cada vez, mantendo a devida distância, a menos que formem casais. Recomenda-se lavar as mãos com sabão ou desinfectante amiúde. Não é exemplo que outros tenham seguido – outros NPISA têm optado, sobretudo, por pavilhões –, mas, para já, nenhuma queixa. “Se os fechássemos, íamos ter um problema de arejamento constante. Assim, há menos probabilidade de contágio”, torna Marília.

Na manhã da última quinta-feira, uma semana depois do início da operação, estavam 12 pessoas no parque – outras duas tinham feito check-in, mas encontravam-se no hospital e outra faria check-in naquela tarde. Seis vivem em casal, o que quer dizer dois por tenda. De resto, cada um na sua tenda. Contas feitas, cinco tendas vagas. E 15 pessoas lá fora, 13 das quais desinteressadas – por enquanto.

Inglório mendigar 

Os tempos não estão bons para ninguém, menos ainda para quem vive de mão estendida. Antes, Américo sentava-se a um canto, levantava as calças para deixar ver a prótese e era como se pusesse a deficiência a leilão. “Agora, não posso andar a pedir. Para já, devemos ficar em casa. Mesmo que fosse para a rua, não há a quem pedir.”

Há quem se amanhe. Que o diga Manuel Vieira, 49 anos muitíssimo gastos. “Andava a arrumar carros à beira do casino”, conta, ainda sentado na sua cadeira de esplanada. “No verão é complicado estacionar. Pessoas que me conhecem deixam-me a chave do carro e eu arrumo. Neste momento, está complicado arranjar dinheiro. Vou lá abaixo. Essas pessoas que me conhecem dão-me uma moeda. Dá para o meu dia-a-dia.” Tradução: dá para o seu litro de vinho.

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Tiago Lopes

As medidas de contenção não o impedem de ir lá fora buscar o essencial. E, para muitos dos que ali estão, o essencial é matar a ressaca. Travá-los, avisa Marília, seria convidá-los a ficar o lado de fora da cerca. 

Tirando modos de calar vícios que não o de opiáceos, tudo chega ali. E o chilrear dos pássaros, o ondular do arvoredo e o som do ribeiro que por ali passa até inspiram serenidade. Alguns mal fizeram o check-in e já temem o check-out. “Agora estamos todos aqui. O que vai acontecer depois? Quando isto acabar, vão-nos pôr na rua?”, perguntava uma mulher, de cabelo cortado à escovinha, que ali está com o companheiro.

“Essa é uma preocupação deles e nossa”, reconhece Marília Costa. “O NPISA tem pensado em soluções. Fizemos uma proposta de um centro de acolhimentos de emergência à Segurança Social, que podia ter sido uma solução nesta fase. E há projectos de habitação partilhada para avançar com habitação social da câmara municipal”, adianta. Essa é a linha da Estratégia Nacional de Integração de Pessoas Sem Abrigo 2017-2023. “As pessoas não são todas iguais. Para umas serve um alojamento colectivo; para outras, habitação partilhada; para outras, nada disso.” Mas, diz, “essa não é uma conversa do agora”.

Agora, “é um dia de cada vez”, como diz Américo. O Rendimento Social de Inserção esvai-se no tabaco. “Neste momento, se quiser tomar um café, não tomo. Habituei-me à situação e sei que temos de ser fortes, mas é... não digo triste, mas aborrecido. Apetece-me um café, nem tenho um euro. Por acaso hoje fui à cidade e vi um senhor que me costuma dar moeda. Deu-me 50 cêntimos. Fui à confeitaria que costumo frequentar: ‘Olhe, dona Ermelinda, tenho 50 cêntimos, posso tomar um café?’. Ela disse que sim!” Uma alegria. A alegria do dia. “Amanhã, logo se vê.”