Epidemias: Apocalipse zombie, sem efeitos especiais
Que vamos lembrar desta epidemia? Quando tudo passar, junto com memórias de tragédia, medo, surpresa, tédio, superação, talvez também a certeza de ser prioridade política e económica o reforço à saúde pública, à investigação, aos dispositivos para prevenção de calamidades e aos mecanismos de mobilização de solidariedade social.
Zombies e epidemias
O encontro sobre epidemias e cidades era na Universidade de Goethe em Frankfurt, em 2014, e reunia estudiosos do tema colhidos entre a antropologia, a história, os estudos de ciência e a saúde pública. Uma das apresentações era sobre zombies e sobrevivência a epidemias. Estranhámos, alguns, a intrusão da linguagem do cinema e jogos num simpósio em que dominavam os nomes pesados e sérios da cólera, febre tifóide, sífilis, tuberculose, sida, SARS, chikungunya, dengue; em que se falava de biossegurança e cidades-sentinela, de políticas urbanas e sanitárias passadas e contemporâneas, e se articulavam interpretação histórica, análise do presente e aprendizagem para uso futuro. Eu levava a análise das políticas de regulamentação para a sífilis e prostituição em Lisboa e dos debates sobre transmissão e tratamentos experimentais na primeira metade do século XX, apresentando um caso de surto numa família multigeracional de Alfama, em que o alegado paciente zero fora um bebé aleitado por uma vizinha infectada — resultado colateral de um projecto de investigação já terminado sobre o antigo hospital do Desterro em Lisboa e assistência à sífilis.
Outros dos participantes do encontro levavam análises provenientes da China e vizinhanças, do Mediterrâneo, do Índico, das Américas. Ninguém vinha do planeta Hollywood nem havia secção de ficção científica, mas a referência ao apocalipse zombie não estava ali deslocada; pelo contrário, era a vanguarda conceptual na preparação para calamidades, a metáfora usada em departamentos de prevenção e saúde pública para hipotéticas epidemias de contornos imprevisíveis.
Imaginação e realismo no cinema e na saúde
A evocação de zombies traz-nos bandos de mortos-vivos deambulando em busca de presas que se contagiam e transfiguram em crescente malignidade, híbridos de vampiros e monstros esfarrapados, com sangue a jorrar dos olhos e orelhas, pele a explodir, ramos peçonhentos nascendo do tronco e membros, e outros elementos dos filmes de terror. No cinema de pendor realista, os equivalentes dramáticos são o contágio descontrolado, a evolução rápida de sintomas, hemorragias violentas, mortandade generalizada, militarização do espaço público, cenário de guerra e, idealmente, um final de redenção pela ciência e a medicina, cujos agentes personificam heróis em duríssima provação. Assim se viu em Contágio (2011), em Fora de Controlo (1995) e, de certo modo já, no clássico de Elia Kazan Pânico nas Ruas (1950). Mas nem sempre é assim na vida real ou não o é no início de cada nova epidemia.
As epidemias, mesmo as que se tornam apocalípticas, podem chegar sem efeitos especiais. Chegam em silêncio, invisíveis, mascaradas da banalidade das gripes e resfriados, de pneumonias atípicas, encontrando negação e resistência, fazendo-se acompanhar de informações contraditórias, com notícias de longe, de perto e, um dia, a má notícia de já estar instalada no nosso espaço — país, continente, bairro, família, comunidade, rede de amigos. Geram-se, entretanto, epidemias paralelas de notícias e contranotícias, de opiniões e dissertações sobre o significado de uma pandemia e da globalização, sobre os cenários de devastação anunciados em fórmulas matemáticas, sobre o fim do mundo como o conhecemos. Surgem as medidas de saúde pública que alteram os quotidianos e reequacionam o futuro próximo e distante, não sem dar azo a mais epidemias de comentários sobre o estado de excepção; a biopolítica; as desigualdades que a epidemia reforça; o futuro da economia e do ambiente; o potencial da crise na transformação do modo como vivemos e viveremos; as políticas sanitárias comparadas; a pertinência dos testes; a validade dos números apresentados; as atitudes vigilantes de alguns governos e a displicência genocida de outros; a eficácia das medidas na Ásia; a desunião europeia; o significado das fronteiras.
Este apocalipse veio em segmentos: a uns zombifica em clausura doméstica, com ou sem os desafios do teletrabalho e ensino improvisado à distância; a outros traz cenários de guerra em hospitais, unidades de assistência, lares de idosos, morgues e cemitérios; a alguns requisita para manutenção de infra-estruturas; a muitos traz o espectro do desemprego e falência; a outros exponencia a já frágil situação no limite da existência; e em uns tantos gera uma criatividade solidária que se traduz em produzir, a partir da base, meios de apoio aos serviços de saúde, inventar equipamentos com materiais alternativos ou desenvolver esquemas de apoio alimentar e social aos mais vulneráveis.
Inesperada ou anunciada?
Muitos interrogam-se como é possível termos a epidemia de covid-19 em pleno século XXI, com tantas conquistas médicas e farmacêuticas, com tanta tecnologia disponível. Talvez a pergunta faça sentido para quem herdou a visão optimista dos anos 60-70 do século passado, quando se acreditava que a luta contra as doenças infecciosas estava tecnicamente ganha. Havia antibióticos e vacinas; estava esquecida a pneumónica de 1918, a última das grandes pandemias; a erradicação da varíola exemplificava o sucesso de um programa vertical à escala global, que se procurava replicar noutros casos (pólio, malária, tuberculose). Vaticinava-se um futuro sem novidades para a infecciologia, que ficaria circunscrita à chamada medicina tropical e ao mundo dito em desenvolvimento — onde não se dera ainda a chamada transição epidemiológica entre a predominância de infecciosas e transmissíveis (disenterias, tuberculose, etc.) para a predominância de crónicas e degenerativas (cardiovasculares, oncológicas, diabetes).
Tudo mudou rapidamente, e logo nos anos 80. Primeiro, a sida. Jovens saudáveis com pneumonias que pareciam fáceis de tratar morriam nos centros médicos mais avançados e dotados do mundo. O resto é conhecido: em alguns anos identificou-se o retrovírus (vírus de ARN, que se replica num processo inverso ao habitual dos vírus de dupla hélice, ou ADN) que desmantelava o sistema imunitário, o VIH; constatou-se que atingia milhões; percebeu-se que afinal as doenças infecciosas e transmissíveis, de que esta era um caso, não eram um capítulo em vias de encerramento mas antes um lugar para pesquisa pioneira; uniram-se esforços entre parceiros múltiplos — comunidades, cientistas, clínicos, laboratórios, governos, OMS, UNAIDS — para desenvolver modos de prevenção e mitigação, incluindo o combate ao estigma e o envolvimento dos afectados, e, claro, para desenvolver terapêuticas eficientes. Estas chegariam na década de 90 e generalizaram-se na seguinte, não deixando de replicar no acesso, mesmo com mecanismos de mitigação, as grandes assimetrias mundiais que a epidemia tornara óbvias. Pelo caminho, estima-se que morreram cerca de 30 milhões. Segundo dados da OMS, cerca de 40 milhões convivem com VIH, dos quais pouco mais de metade recebe tratamento.
A sida não veio só; já antes se identificara o ébola, demasiado letal para se espalhar para fora das comunidades em que emerge, uma vez que mata o portador quase de imediato. Muitas outras infecções e potenciais epidemias foram elencadas pela jornalista de ciência Laurie Garret em The Next Epidemic (1992), num volume sobre Sida no Mundo (AIDS in the World), lançado pela Escola de Saúde Pública de Harvard. Esse elenco, bem como a análise crítica das determinantes económicas e políticas que levam a que simples vírus se tornem epidemias globais afectando desigualmente as populações, seriam expandidos nos livros seguintes, entre os quais, o sugestivo The Coming Plague, de 1994. Na mesma linha, o virologista Stephen Morse mostrava em Emerging Viruses (1993) o modo como a intervenção humana no ambiente acelerava o tráfico viral entre espécies e multiplicava as possibilidades de epidemias fatais e globais.
Ou seja, se a equação era de uma luta vitoriosa de humanos contra vírus, como se acreditava nos anos 70, os dados dos anos 90 mostravam que os vírus estavam a ganhar, efeito das próprias acções humanas. Note-se que esses pequenos seres, que nem sequer têm vida independente e consistem em agregados de genes que se reproduzem parasitando células vivas, não têm em si qualquer significado ou intenção. Mas, dos milhares de milhões que existem, alguns podem tornar-se um desastre no encontro com as células humanas. O desastre é máximo quando o organismo não tem memória, nunca esteve confrontado com aquela sequência, não criou “imunidades”. Assim aconteceu logo no século XVI às populações das Américas, quando alguns vírus de gripe lá chegaram nos corpos europeus com sistemas imunitários a eles acomodados, e a varíola foi disseminada, acidental ou propositadamente. Estamos agora em situação semelhante, mas os vírus desconhecidos não vieram dos conquistadores espanhóis. Vieram, talvez, dos morcegos-ferradura asiáticos.
De zombies a zoonoses
Em vez de vampiros, temos morcegos neste enredo. Talvez pangolins. Tivemos galinhas e outras aves, no que foi uma das ameaças mais próximas de epidemia generalizada, a gripe aviária. E camelos, no MERS. E porcos; uma vaga de peste suína antecedeu a sida e outras sucederam-lhe. E chimpanzés e outros símios, todos portadores de vírus a que estão acomodados. De forma rápida ou lenta, num só encontro alimentar entre um humano e um morcego, ou na repetida manipulação da carne de símios caçados, ou na produção concentracionária de carne em gigantescas prisões de aves ou de porcos, ou nos mercados de espécies vivas, muitas são as situações associadas à cadeia alimentar em que vírus passam de uma espécie para outra e chegam aos humanos. Por vezes, são elementos ainda mais simples que os vírus, como se viu no caso das vacas loucas, envolvendo também ovelhas, que trouxe a todos, incluindo humanos, a proteína infectante (prião) que desfaz o sistema neurológico e se mascara de doença degenerativa. E sabemos que há muitos mais que podem surgir com os degelos e outros efeitos das alterações climáticas em curso.
Estas décadas poderão ser lembradas como as da consciência das zoonoses, isto é, doenças transmitidas por animais não humanos a humanos. Este ano será lembrado como uma interrupção geral, uma paralisia não desejada, com bolsas de apocalipse para quem está no olho do furacão, onde caem corpos, faltam equipamentos, sobra stress, faltam os instrumentos habituais dos humanos contra as infecções, sobra desespero, falta significado. Não virão a faltar intérpretes a emprestar significados e moral a estas epidemias, algo que sempre se fez, mesmo depois de consolidada a teoria dos micróbios: de castigos divinos a intentos maléficos de grupos e países em tensão guerreira, as interpretações são ágeis em culpabilizar grupos, nações, intenções. Assim se fazia com a peste medieval (judeus), com a sífilis no renascimento europeu (franceses, napolitanos, espanhóis, os planetas), com a sida (homossexuais, haitianos, americanos); até a influenza de 1918, possivelmente originada no Kansas, Estados Unidos, é conhecida até hoje como gripe espanhola, apenas porque a Espanha a noticiava quando os outros, em guerra, a abafavam. Criando incidentes diplomáticos, alguns políticos irresponsáveis referem o SARS-Cov-2 como “vírus chinês” — algo que é não apenas ofensivo como vai contra as directivas da OMS, que desencoraja a nomeação de novas epidemias com referência a lugares (por exemplo, o vírus do Nilo ocidental).
Espera-se que este ano seja também lembrado como aquele em que se ampliou a consciência sobre a necessidade de manter estruturas de assistência preparadas e bem equipadas, de pôr como prioridade política o investimento na investigação e na saúde pública, entre hospitais, postos de saúde descentralizados, linhas de atendimento, apoio aos profissionais. Que as políticas orçamentais não desfalquem estes sectores e doravante os reforcem: se há um ensinamento central do estudo das epidemias, passadas e presentes, é a importância do reforço da saúde pública e da investigação.
Memória
Não sabemos como vamos lembrar-nos desta epidemia. Sugere o historiador Charles Rosenberg que estas percorrem uma dramaturgia com um momento inicial de negação, seguido de confusão, depois de reconhecimento e medidas; e ao final que um dia chegará, feliz ou infeliz, segue-se o esquecimento. A gripe espanhola de 1918 ficou quase escondida da história, apesar de brutal e devastadora. Um dos raros testemunhos literários, Pale Horse, Pale Rider, de Katherine Ann Porter, que a viveu, foi apenas publicado em 1939. Nemesis, de Philip Roth, sobre a epidemia de poliomielite em Newark, que o autor testemunhou na década de 1940, é de 2011. Um grande intervalo separa também a publicação do Diário do Ano da Peste, de Daniel Defoe, em 1722, da epidemia de Londres a que este se reporta, ocorrida em 1665. Já a sida teve muitas vozes em directo, deixando uma impressionante produção artística em todos os campos. O ébola originou best sellers do género terror médico.
A covid-19 está a gerar todo um novo estilo de diarismo digital, com formação de grupos em redes sociais, núcleos de interpretação de resultados, enquanto grande parte da vida se transfere para um telequotidiano. Mas só uma parte, já que continuam, sob stress inusitado, a produção e distribuição de alimentos, a recolha de lixo, a manutenção de infra-estruturas, e, em modo de apocalipse, o corpo-a-corpo nos hospitais e centros de assistência. Esses momentos dramáticos e muitas vezes trágicos vamos certamente querer afastar da lembrança, realocando a imaginação para um cenário em que nada disto torna a acontecer. Talvez o cenário possível, desejável e viável de escolhas políticas que põem em primeiro lugar a saúde, que reforçam a investigação, a solidariedade social, e uma ampla e eficaz cobertura sanitária com dispositivos de prevenção que não passem pelos excessos de intrusão digital já em curso nalguns lugares. Que venham, com os romances e peças de teatro de tédio ou de terror, também as narrativas de edificação da saúde pública como prioridade. Só assim afastaremos os zombies.
Cristiana Bastos, antropóloga, ICS-ULisboa