Um mundo novo depois do coronavírus?
Na esteira da pandemia, o Estado, os Estados, podem ter reforçado exponencialmente o seu papel insubstituível de protecção dos cidadãos.
Se não sabemos ao certo que mundo nos espera depois da covid-19 – na hipótese menos pessimista de uma duração relativamente curta da pandemia e de não acontecer um segundo surto –, talvez seja possível lançar algumas pistas a partir desta crise sem precedentes. É, obviamente, uma aventura desprovida de certezas mas inspirada por projecções da realidade global que estamos a viver.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Se não sabemos ao certo que mundo nos espera depois da covid-19 – na hipótese menos pessimista de uma duração relativamente curta da pandemia e de não acontecer um segundo surto –, talvez seja possível lançar algumas pistas a partir desta crise sem precedentes. É, obviamente, uma aventura desprovida de certezas mas inspirada por projecções da realidade global que estamos a viver.
Primeira questão: qual será o futuro papel do Estado depois de uma crise extrema em que toda a sociedade ficou sob a sua dependência e protecção? Preocupações sobre os riscos de um prolongamento dessa tutela já tiveram eco um pouco por toda a parte, nomeadamente em alguns países do Norte da Europa com amplas tradições democráticas, como a Noruega – onde chegou a falar-se de perigo de “golpe de Estado” – e na Dinamarca, onde os parlamentos e a sociedade civil impuseram correcções preventivas. Entretanto, nas chamadas democracias “iliberais” do Leste Europeu, como a Hungria e a Polónia, a crise sanitária serviu de pretexto para os regimes autocráticos aí vigentes aprofundarem ainda mais o “confinamento” da democracia. Finalmente, nos países europeus mais atingidos pela pandemia, a Itália e a Espanha, o combate dos governos à crise implicou exigências tão dramáticas que os temores de um peso excessivo dos poderes do Estado deixaram para já de fazer sentido (aliás, um político outrora tão irrelevante como o primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte desfruta hoje de uma elevada taxa de popularidade, neutralizando pelo menos temporariamente as ameaças populistas de um Salvini).
Em todo o caso, mesmo depois de ultrapassada a actual fase da pandemia, o Estado continuará a ocupar a linha da frente devido ao papel que teve e terá de assumir por tempo ainda indeterminado na assistência económica aos cidadãos e às empresas. Ora, isto acontece não apenas na Europa mas também nos Estados Unidos e outros países infectados pela covid-19, onde, para estupefacção geral, a velocidade e profundidade atingidas pela crise em menos de três meses obrigaram governos e administrações públicas a ter de ocupar (quando – e se – o conseguiram fazer) o imenso vazio e desamparo em que mergulharam as respectivas sociedades.
Este panorama favorece, naturalmente, os regimes autoritários e de capitalismo de Estado, com mecanismos de vigilância e controlo de toda a sociedade como é o caso da China – permitindo-lhe posicionar-se na vanguarda mundial face a uns EUA “insularizados” pelo trumpismo –, mas nem por isso o “!imperador” Xi Jinping tem motivos para vangloriar-se: foi na China que o vírus começou e se expandiu perante a ocultação inicial e prolongada do regime.
Na esteira da pandemia, o Estado, os Estados, podem ter reforçado exponencialmente o seu papel insubstituível de protecção dos cidadãos. Mas terão de ser estes, pela forma responsável como viverem os constrangimentos que lhes são impostos como condição de sobrevivência e pelo espírito de entreajuda que souberem manifestar em relação aos seus semelhantes, quem poderá inspirar o aparecimento de um mundo diferente daquele que nos conduziu à maior maldição dos tempos modernos.
Um mundo onde o Estado esteja efectivamente ao serviço dos cidadãos, tendo aprendido a lição maior destes meses onde a lei da vida acabou por imperar sobre todas as outras, incluindo a lei da morte. Um mundo onde os Estados repressivos e anti-democráticos, as leis da selva do velho capitalismo financeiro ou do novo peso asfixiante de um capitalismo numérico – emergente do confinamento do teletrabalho –, possam dar lugar a outro mundo mais livre, mais justo, mais igualitário e mais frugal, menos alienado pela febre consumista e mais harmonioso com os genuínos valores e prazeres da vida, cujo imperativo nos terá sido revelado ao longo desta reclusão forçada.
É também neste mundo solidário que nós, europeus, temos de inserir-nos se formos capazes de ultrapassar o egoísmo suicidário de alguns Estados fechados sobre si próprios, redescobrindo as raízes do sonho comunitário inicial dos pais fundadores. Nunca a Europa foi tão necessária como agora – por causa dela e por causa de um mundo que tanto precisa de exemplos solidários.
P.S.: Tenho perfeita consciência da tentação utópica deste texto. Mas, nestes dias, seja-nos também permitido sonhar – e acreditar.