Quando regressamos ao velho normal?

No novo normal, quando escrevo “espero que esteja bem”, não é uma formalidade, espero sinceramente que o meu interlocutor esteja mesmo bem.

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Miguel Manso

No novo normal, não perco tempo a olhar para o roupeiro, cheio, sem saber o que vestir. Não perco tempo ao espelho numa rotina que envolve limpeza, hidratação, maquilhagem. Não fico sentada na cozinha a comer torradas e a ver os emails de trabalho, enquanto o sol quente a invade e convida a ficar mais um pouco. Não perco tempo na paragem do autocarro ou na estação de metro.

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No novo normal, não perco tempo a olhar para o roupeiro, cheio, sem saber o que vestir. Não perco tempo ao espelho numa rotina que envolve limpeza, hidratação, maquilhagem. Não fico sentada na cozinha a comer torradas e a ver os emails de trabalho, enquanto o sol quente a invade e convida a ficar mais um pouco. Não perco tempo na paragem do autocarro ou na estação de metro.

No novo normal, não chego à redacção, cumprimento a segurança, saúdo os colegas que chegaram mais cedo, lavo as mãos — no velho normal, já lavava as mãos por andar nos transportes públicos —, enxaguo a chávena, encho-a de chá, olho a ponte e o Cristo-Rei antes de ligar o computador e mergulhar no dia de trabalho.

No novo normal, não corro para apanhar o autocarro que pode ir cheio e seguro a mala, não vá alguém abri-la no meio dos solavancos e dos encontrões. Ou não espero por aquele autocarro que faz a rota maior, em que posso ir sentada, e ver a cúpula da basílica e o jardim da Estrela, a sinagoga, o Marquês, como se fosse uma turista pela primeira vez na cidade ou encontrar um velho conhecido e irmos à conversa até casa.

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Daniel Rocha

No novo normal, não há idas às compras; não há folhear as novidades nas livrarias; não há montras nem monumentos para ver; não há idas ao ginásio; não há almoços com os colegas, em que mal nos ouvimos num espaço onde a insonorização foi esquecida; não há jantares com os amigos naquele restaurante que acabou de abrir e temos mesmo de ir experimentar; não há cinema, teatro e idas a concertos. No novo normal, não vamos cumprir a Paixão Segundo São João, na Gulbenkian, como não há Semana Santa. 

No novo normal, acordo hora e meia mais tarde, não há roupa, maquilhagem ou dilemas frívolos que me atrasem, amasso e ponho o pão no forno, que ficou a levedar da noite anterior — continuo a experimentar receitas porque, embora descendente de uma linhagem de padeiros, perdão, de industriais de panificação, ainda estou longe da perfeição. Espero meia hora, o tempo de preparar o local de trabalho na mesa da sala. Como pão quente com manteiga a derreter, sem olhar para um único ecrã, só para o lado de lá da janela, onde os vizinhos passeiam os seus cães numa rua em que os carros se esqueceram de passar.

​No novo normal, produzo e consumo notícias de um tema só; o mesmo que se impõe em todas as conversas; o mesmo que me faz suster a respiração enquanto me afasto dos poucos que passam por mim na rua; o mesmo que invade os meus sonhos e me faz acordar a pensar nesta vida que parece suspensa, mas que se desmorona a cada dia que passa.

No novo normal, quando escrevo “espero que esteja bem”, não é uma formalidade, espero sinceramente que o meu interlocutor esteja de saúde. No novo normal, quando falo ao telefone em termos profissionais, acabo por, invariavelmente, entrar na esfera pessoal, mesmo sem querer. “Morreu-me uma tia”, diz-me um assessor quando lhe pergunto se está bem. “Desculpa, mas os miúdos estão em cima de mim”, suspira uma colega. “Isto está a ser muito mau”, confessa uma fonte, assustada. “O que vai ser o nosso futuro? O futuro dos nossos filhos?”, insiste. No novo normal, estas perguntas angustiam-me mais do que no velho normal.

No novo normal, descobrimos novos amigos e novas solidariedades. No novo normal, ligamos aos mais velhos para saber se precisam de alguma compra e compreendemos que precisam de conversar. Deixamos-lhes as compras à porta, falamos à distância, tentando dar aquele ar de que está tudo bem, queremos que fiquem animados, mas fraquejamos na hora da despedida, sem lhes podermos tocar.

No novo normal, fazemos um bolo e cantamos os parabéns virados para um ecrã quando queríamos levá-lo para a casa da família, abraçarmos toda a gente, beijarmos o aniversariante e desafinarmos o “Parabéns a você”. No novo normal, não sei se Cristo vai ressuscitar, não haverá gritos e gargalhadas à volta da mesa pascal, mas há um carro da polícia que insiste, pelo altifalante, para que permaneçamos em casa.

No novo normal, não sinto saudades de tudo o que era o velho normal, mas sinto dos abraços e dos risos dos outros que não os meus, com quem atravesso este isolamento. Anseio pelo dia em que possamos, finalmente, sair, respirar e viver sem medo de contágios.