Governo deixa sem apoio recibos verdes com quebras a pique

Mesmo com descidas de 80% ou 90% nas vendas e serviços, trabalhadores ficam sem ajuda. Regra apertada trava acesso à moratória no crédito da casa. Sentimento entre excluídos é de dupla desprotecção.

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Em Portugal há cerca de 315 mil pessoas que têm exclusivamente rendimentos do trabalho independente Joana Freitas

O Governo de António Costa ainda não apresentou uma solução para apoiar os trabalhadores a recibos verdes que estejam a enfrentar uma quebra a pique nas vendas ou nos serviços prestados desde a segunda metade de Março por causa da pandemia do novo coronavírus.

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O Governo de António Costa ainda não apresentou uma solução para apoiar os trabalhadores a recibos verdes que estejam a enfrentar uma quebra a pique nas vendas ou nos serviços prestados desde a segunda metade de Março por causa da pandemia do novo coronavírus.

Apesar de ter criado uma “bóia de salvação” até 438 euros que oficialmente se chama “apoio extraordinário à redução da actividade económica” dos trabalhadores que têm exclusivamente rendimentos do trabalho independente, a medida só se aplica a quem tem uma “paragem total da sua actividade ou da actividade” do sector onde trabalha. E porque entre “redução” e “paragem total” há uma diferença, ficam excluídos todos aqueles que tenham uma descida drástica e próxima de uma paragem, de 80% ou 90%.

Entre os cidadãos excluídos há um sentimento de desprotecção. De dupla desprotecção, não fosse o trabalho independente sinónimo, para muitos, de instabilidade quando dependem de múltiplos trabalhos e tantas vezes recebendo a destempo.

Ao PÚBLICO têm chegado nas últimas semanas relatos de trabalhadores que se vêem excluídos e sem rede. A paragem não é “total”, mas 100 ou 200 euros chegam para sobreviver? Ricardo Cerqueira, de 59 anos, trabalhador independente na área do desporto, dá voz a essa indignação, afirmando que a proposta do Governo ignora aqueles que não são os “falsos” recibos verdes e não tem em conta as “reais especificidades do verdadeiro trabalho independente, que pode ter quebras abruptas de rendimento, mas raramente deixa de ganhar aqui ou ali, quando mais não seja pelo pagamento diferido de trabalhos já realizados e pagos a 30 ou a 60 dias”. E se uma quebra significativa, por si só, coarcta o acesso ao benefício, mais desprotecção existe entre aqueles que, estando nessa circunstância, têm rendimentos mais baixos.

Queixas à Provedora

Não por acaso, na última semana alguns trabalhadores com quebra de actividade decidiram escrever à Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral. Os serviços deste órgão do Estado estão a analisar as exposições e, em função desse estudo, será avaliado se as situações aconselham a uma intervenção urgente da provedora, confirmou o PÚBLICO junto de fonte oficial da instituição.

Confrontado pelo PÚBLICO sobre a inexistência de uma solução para os trabalhadores independentes que enfrentam uma paragem muito significativa da sua actividade, o Ministério do Trabalho, liderado por Ana Mendes Godinho, nada disse, apesar dos sucessivos contactos desde o dia 24 de Março para se obter uma explicação sobre a particularidade de a medida exigir a “paragem total” e não uma “redução”. Uma diferença que, por ora, já impediu que alguns trabalhadores com quebras altas tivessem requerido o apoio para um primeiro mês (prorrogável até seis).

O próprio formulário online através do qual se pode pedir a ajuda revela a contradição. No site Segurança Social Directa, um cidadão tem de assinalar: “Declaro sob compromisso de honra que me encontro em situação de paragem total da actividade em consequência do surto de covid-19”. Mas para iniciar o pedido, carrega num rectângulo verde onde está escrito: “Pedir apoio à redução de actividade”.

Há outras implicações. Quem preenche os requisitos pode pedir à Segurança Social para adiar o pagamento das contribuições para depois do fim do período do apoio, começando a pagá-las a prestações (durante um ano) a partir do segundo mês seguinte. Pelo contrário, quem estiver com uma quebra, mesmo que muito acentuada, terá de continuar a pagar as contribuições. Embora possa diferir dois terços dos valores de Março, Abril e Maio aderindo a um plano a prestações de três ou seis meses — porque esta medida está disponível para todos os trabalhadores independentes —, isso implica continuar a pagar agora e não evita acumular pagamentos a partir de Julho.

Outro problema: também não é possível beneficiar da moratória no empréstimo à habitação própria (suspensão das prestações durante seis meses) do Estado, porque só é abrangido quem é elegível para o apoio extraordinário.

Iniciantes de fora

Também surgem críticas por parte de trabalhadores que estão a começar a trabalhar. Quem está no primeiro ano de actividade está isento do pagamento das contribuições à Segurança Social e para pedir o apoio é preciso ter pelo menos três meses de contribuições ao longo dos últimos 12 meses. A dúvida instalou-se sobre se estes trabalhadores estariam dentro ou fora, pois é possível fazer contribuições voluntárias. Mas quem está abrangido pela isenção fica de fora. E o mesmo se passa se estes trabalhadores pretenderem ter acesso ao outro apoio por ficar em casa a acompanhar um filho.

É o caso de Marta Nobre, de 35 anos, a trabalhar na área da produção e comunicação. Abriu actividade em Dezembro e, como está isenta de contribuições, sente-se sem chão. Tem um filho pequeno. Não pode aceder nem a este auxílio nem à medida de apoio à família para estar em casa por causa do encerramento do infantário. Sente que não há igualdade de circunstâncias porque a quebra do mercado “não distingue” entre quem começou há mais ou menos tempo como trabalhador independente.

Vários membros do Governo têm referido que as medidas lançadas estão em constante análise para se decidir se devem ser revistas, mas, para já, isso não aconteceu com estas ajudas, desenhadas há três semanas. Em relação ao apoio à paragem da actividade, o único recuo do Governo foi prometer pagar a verba ainda em Abril a quem submeter o requerimento até dia 15.

Há em Portugal cerca de 315 mil pessoas que têm exclusivamente rendimentos do trabalho independente. Desde o início do ano abriram ou reabriram actividade cerca de 58.214 pessoas (não sendo claro se, deste número registo da administração fiscal, há alguns que acumulam recibos verdes com trabalho dependente ou se todos são pessoas com rendimento exclusivo do trabalho independente).