Procura das urgências caiu 45%. Onde estão os enfartes e os AVC, perguntam os investigadores
Os dados foram analisados por um grupo de investigadores da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa.
A procura dos serviços de urgência dos hospitais está a diminuir substancialmente. Em Março, as idas às urgências decresceram globalmente 45%. Mas não foram apenas os doentes pouco ou não urgentes que desapareceram destes serviços. Também se observou uma redução significativa no número de doentes em que o recurso às urgências se justifica: os que são triados com pulseiras amarelas (urgentes) e laranja (muito urgentes).
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A procura dos serviços de urgência dos hospitais está a diminuir substancialmente. Em Março, as idas às urgências decresceram globalmente 45%. Mas não foram apenas os doentes pouco ou não urgentes que desapareceram destes serviços. Também se observou uma redução significativa no número de doentes em que o recurso às urgências se justifica: os que são triados com pulseiras amarelas (urgentes) e laranja (muito urgentes).
São conclusões de um estudo realizado por um grupo de investigadores da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Universidade Nova de Lisboa nesta sexta-feira divulgado. Os investigadores foram analisar a procura dos serviços de urgência/emergência hospitalar em Março, o primeiro mês de resposta à covid-19 em Portugal, comparando-a com a média da série histórica de episódios de urgência entre 2014 e 2019.
Em Março passou, o total de atendimentos ascendeu a 295.451, menos 45% do que seria de esperar. Admitindo que o estudo apresenta algumas limitações, como a falta de informação sobre as características demográficas, os diagnósticos principais e as comorbilidades dos doentes, os autores notam, porém, que a “associação entre o início da pandemia e a redução desta procura é evidente”.
Uma parte desta redução é natural, porque há menos acidentes rodoviários e de trabalho, gripes e constipações com sintomatologia pouco grave. Mas o decréscimo é demasiado expressivo para poder ser explicado apenas por estes motivos. “Há aqui um fenómeno brusco que claramente influencia o recurso aos serviços de urgência. As pessoas não têm confiança e têm medo de ser contagiadas. Não sabem que os circuitos e as equipas [que tratam os pacientes com covid-19 e sem a doença] estão separados”, observa Rui Santana, subdirector da Escola Nacional de Saúde Pública.
Se esta redução é positiva, por um lado, por libertar recursos para o combate à covid-19 e corrigir o fenómeno de procura inadequada destes serviços altamente complexos e caros (“Portugal é o país onde se utiliza mais a urgência/emergência hospitalar per capita no espaço da OCDE”), também fica claro que o decréscimo da procura poderá resultar no adiamento de “situações que se tornarão mais graves no futuro”, sublinham os especialistas do Departamento de Políticas e Gestão de Sistemas de Saúde e do Centro de Investigação em Saúde Pública da ENSP que assinam o estudo.
Como justificações para a diminuição observada, os investigadores elencam não só o receio de contaminação, mas também as limitações decorrentes do isolamento social, além da consciência, neste contexto, da necessidade “de não sobrecarregar serviços que estão centrados na resposta à pandemia”.
Em Março passado, a procura de doentes pouco urgentes (triados com pulseira verde) diminuiu 47% (101 mil observados contra 193 mil esperados). Mas, ao mesmo tempo, houve cerca de 120 mil episódios de urgência triados como amarelos, quando o total esperado, tendo em conta as médias desde 2014, seria o dobro; e triados como laranja foram 31 mil, contra os cerca de 53 mil esperados. “São doentes que desapareceram das urgências. Onde estão os enfartes e os AVC's [acidentes vasculares cerebrais]?”, pergunta, a propósito, Rui Santana.
Um dos objectivos dos investigadores é justamente o de chamar a atenção para este problema. “Neste contexto, não sei se é moral fazer isto, porque estamos focados no combate à covid-19, mas possivelmente já devia estar a ser pensado o planeamento do período pós-pandémico”, defende Rui Santana.
Além de poder ter um impacto directo na não resolução dos actuais problemas que deixaram de ser expressos em procura”, este fenómeno pode ter reflexos “no adiar de situações que se tornarão mais graves no futuro”, alertam os investigadores no estudo que deverá ser publicado em breve na Revista Portuguesa de Saúde Pública. Este adiamento “poderá provocar um impacto directo na saúde dos indivíduos e um aumento do ´stock`de doença que terá de ser atendido numa forma mais grave e diferida”, acrescentam.
Por regiões, as administrações regionais de saúde do Norte e de Lisboa e Vale do Tejo concentram, como seria de esperar, “o maior volume de episódios ao longo da série, e apresentaram grandes reduções em valores absolutos em Março de 2020”, enquanto a ARS do Alentejo apresentou “a menor redução percentual do número de episódios”, sendo também a região do país com o menor número de casos confirmados de covid-19 em Portugal.