Vamos falar sobre os impactos de género da covid-19?
A experiência com outras epidemias demonstra que o planeamento e resposta à crise sem perspectiva de género agrava a desigualdade entre homens e mulheres. Nesta altura tão delicada da nossa existência enquanto sociedade, o feminismo não pode — nem vai! — fazer quarentena.
Vivemos tempos excepcionais. De um momento para o outro vimo-nos obrigadas/os a tomar uma série de medidas preventivas que nos baralham as rotinas, nos obrigam a reajustar o nosso modo de vida e a coabitar com a ansiedade espoletada pelo medo e pela incerteza.
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Vivemos tempos excepcionais. De um momento para o outro vimo-nos obrigadas/os a tomar uma série de medidas preventivas que nos baralham as rotinas, nos obrigam a reajustar o nosso modo de vida e a coabitar com a ansiedade espoletada pelo medo e pela incerteza.
Apesar dos desafios da pandemia em termos de saúde e da severidade dos seus impactos económicos, sociais, políticos e culturais, é importante atentar à forma como as desigualdades estruturais pré-existentes se reconfiguram e agravam nas actuais circunstâncias societais. Para além das discrepâncias com base na classe social, sabemos que mesmo dentro dos grupos mais afectados se verificam diferenças com base no género.
De acordo com um artigo recente sobre os impactos de género da covid-19, as epidemias e pandemias afectam homens e mulheres de forma diferente. Olhando para as estatísticas da infecção com foco no sexo biológico, é possível verificar que a taxa de mortalidade é maior entre os homens. No entanto, as Nações Unidas alertam-nos para os inúmeros impactos invisíveis que penalizam de forma desproporcional as mulheres e que é necessário considerar na batalha contra a nova pandemia. Estes impactos transcendem a esfera da saúde e ramificam-se para as restantes áreas da vida das mulheres, acarretando efeitos relevantes ao nível da sua saúde física e psicológica, segurança e autonomia.
As estatísticas do Pordata revelam a crescente feminização dos cuidados de saúde em Portugal. Há mais médicas, enfermeiras, farmacêuticas, auxiliares de acção médica e, por esse motivo, não é redutor afirmar que são as mulheres que estão na linha da frente da batalha contra a pandemia de covid-19. Adicionalmente, a grande maioria das cuidadoras e profissionais em contexto comunitário (em lares de idosos/as, instituições de acolhimento, apoio a sem-abrigo) são também mulheres. Estas profissionais acabam por ser expostas a um maior nível de stress na gestão do aumento da pressão laboral, protecção individual e conciliação com o cuidado à família. No entanto, apesar de termos duas figuras femininas na linha da frente governamental (Ministra da Saúde e directora-geral da Saúde), não deixa de ser paradoxal que continuem a ser, maioritariamente, homens os especialistas chamados a pronunciar-se sobre os temas relacionados com o vírus e suas consequências
As medidas de isolamento social, implementadas para minimizar as taxas de infecção, têm também consequências importantes na vida quotidiana das mulheres. A conciliação entre o trabalho e a vida familiar sempre foi uma área de desigualdade entre homens e mulheres. Em isolamento social, estas diferenças acentuam-se. Muitas mulheres vêem-se obrigadas a ser produtivas em regime de teletrabalho, a cuidar dos/as seus/suas filhos/as, a apoiar actividades de homeschooling e a gerir tarefas domésticas. Esta transposição das actividades laborais com as actividades domésticas e familiares traduzem-se num maior défice de tempo livre, sobrecarga física e mental e limitam a sua autonomia e oportunidades económicas. A este nível importa relembrar as palavras de Silvia Federici relativamente ao trabalho reprodutivo: “Aquilo a que chamam amor, nós chamamos trabalho não remunerado”.
Também a segurança de muitas mulheres se vê comprometida. Em contexto de crise tendem a aumentar as situações de violência doméstica e violência sexual. O estado de emergência nacional resulta no isolamento de muitas mulheres com os seus agressores, o que as vulnerabiliza e desprotege de forma muito mais acentuada. Desta forma, as mulheres ficam muito mais expostas à violência em contexto de intimidade, como mostram os dados do aumento que se verificou na China aquando do pico da epidemia. Consciente desse facto, a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género criou a Linha SOS 3060 e uma linha de denúncia por vizinhos (800 202 148) para apoiar a facilitar o apoio a vítimas em isolamento. A este respeito, e reconhecendo os limites das medidas previstas para apoiar as vítimas de violência de género, a UMAR recomenda também a “retirada imediata do agressor da residência aquando da notícia do crime por parte das entidades policiais”.
O impacto ao nível da saúde sexual e reprodutiva tem também vindo a reunir preocupações desde o início da pandemia. A dificuldade no acesso a contraceptivos, consultas de planeamento familiar, apoio face a interrupções voluntárias da gravidez e apoio pré e pós parto afectam maioritariamente a autodeterminação e a condição de saúde da mulher. No que concerne ao apoio pré e pós parto durante a pandemia de covid-19, a OMS tem orientações específicas relativamente à saúde e bem-estar da mulher, orientações essas que nem sempre se vêem respeitadas em Portugal.
Para além das consequências ao nível da saúde, a covid-19 acarreta impactos consideráveis a nível económico e laboral que tendem a aumentar as discrepâncias sociais pré-existentes. As mulheres ocupam a maioria dos postos de trabalho no sector dos serviços e em actividades consideradas não essenciais (cabeleireiros, restaurantes, centros de estética, lojas de roupa), profundamente impactadas pelas medidas de contenção associadas ao novo coronavírus. Por esse motivo, à semelhança de outros países, as situações de quebra económica nestes sectores tendem a afectar mais as mulheres.
De acordo com a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, a feminização do mercado de trabalho tem sido acompanhada por uma tendência para o aumento das formas flexíveis e precárias de emprego. Por esse motivo, durante e após a pandemia, agravam-se as preocupações com a situação de fragilidade económica e social em que se encontram e encontrarão muitas mulheres.
Contudo, o impacto do novo vírus na vida das mulheres não se resume ao mercado de trabalho tradicional, já de si desigual entre géneros. Muitas mulheres trabalham em actividades de economia informal — empregadas domésticas, cuidadoras a domicílio, amas — sem um vínculo laboral formal, não estando portanto abrangidas pelas medidas de apoio económico. Se para as mulheres que se encontram enquadradas no mercado de trabalho convencional o panorama é negro, para aquelas de nós que vivem à margem o dia-a-dia torna-se cada vez mais incomportável. A Rede de Trabalho Sexual escreveu recentemente uma carta à Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social onde se elencam as diversas dificuldades sentidas por quem, nesta altura de emergência social, se encontra totalmente desprotegida.
É importante acrescentar que a experiência com outras epidemias demonstra que o planeamento e resposta à crise sem perspectiva de género agrava a desigualdade entre homens e mulheres. Por esse motivo, a ONU Mulheres defende que é fundamental a participação e a liderança das mulheres no combate à nova epidemia e na definição de medidas que garantam equidade e amorteçam os seus impactos de género.
Finalmente, sublinhamos que, nesta altura tão delicada da nossa existência enquanto sociedade, o feminismo não pode — nem vai! — fazer quarentena.