Covid-19: No Leste da Ucrânia, o combate ao novo coronavírus reforça o pesadelo da guerra
A proibição dos movimentos entre os dois lados na linha da frente está a separar famílias e a dificultar o pagamento de pensões aos mais velhos. A Human Rights Watch pede uma solução urgente e teme-se um cenário “devastador” se o novo coronavírus se espalhar na região.
Na linha da frente da guerra no Leste da Ucrânia, que prossegue sem interrupção há seis anos apesar do recente apelo da ONU a um cessar-fogo em todo o mundo, o combate contra o novo coronavírus deixou famílias separadas e pessoas a dormir amontoadas em pequenos quartos de hotel, caros demais para os seus salários e sem condições para se manter o distanciamento social.
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Na linha da frente da guerra no Leste da Ucrânia, que prossegue sem interrupção há seis anos apesar do recente apelo da ONU a um cessar-fogo em todo o mundo, o combate contra o novo coronavírus deixou famílias separadas e pessoas a dormir amontoadas em pequenos quartos de hotel, caros demais para os seus salários e sem condições para se manter o distanciamento social.
Na província ucraniana de Lugansk, o posto de controlo de Stanitsa Luhanska é o único ponto de passagem para quem trabalha no território controlado pelo Governo de Kiev e tem casa na região dominada pelas forças separatistas apoiadas pela Rússia. Só em Janeiro foram registadas mais de um milhão de passagens entre ali e nos outros postos de controlo ao longo da linha de contacto da guerra.
Mas o movimento entre os dois lados foi interrompido na semana passada por causa do combate ao novo coronavírus. Em poucos dias, o Governo de Kiev e as forças pró-russas que controlam partes das províncias de Lugansk e Donetsk decretaram a proibição dos movimentos e apanharam de surpresa populações já massacradas por seis anos de uma guerra que fez 13 mil mortos e 2,5 milhões de deslocados.
Poucas excepções
Iuri trabalha em Kiev, a 900 km do posto de controlo de Stanitsa Luhanska, encostado à fronteira com a Rússia.
Para lá chegar, pagou 3000 hrivna de táxi, o equivalente a 97 euros – num país onde o salário mínimo é agora de 4723 hrivna (153 euros), depois de um aumento de quase 12% em Janeiro.
Ouvido pela organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch (HRW), Iuri disse que foi impedido de atravessar para o território controlado pelos separatistas porque não cumpria os requisitos de excepção, reservados para casos como morte ou doença grave de um familiar. Sem dinheiro para regressar a Kiev, passou a primeira noite na rua e agora paga 130 hrivna (quatro euros) por dia para dormir num hostel.
“Só quero ir para casa. A minha mãe está lá, os bombardeamentos recomeçaram na nossa aldeia e é muito duro para ela estar sozinha”, disse Iuri.
Num comunicado divulgado esta quinta-feira, a HRW apelou ao Governo ucraniano que encontre soluções para as pessoas que chegam aos postos de controlo e são proibidas de passar.
“A Ucrânia enfrenta uma emergência de saúde pública, e o Governo tem todas as razões para limitar os movimentos, incluindo nas áreas afectadas pela guerra nas regiões de Lugansk e Donetsk”, disse a directora-adjunta da Human Rights Watch para a Europa e a Ásia Central, Rachel Denber. “Ao mesmo tempo, deve também esforçar-se para manter as famílias unidas e acautelar as necessidades humanitárias das pessoas que ficam retidas”, sublinhou a responsável.
O encerramento dos pontos de passagem afecta também milhares de habitantes das áreas controladas pelas forças separatistas, em particular os mais velhos. Apesar de viverem sob controlo dos separatistas, têm de ir ao outro lado todos os meses para levantar os cheques das pensões pagas pelo Estado ucraniano – e a interdição da passagem afecta também a economia das áreas sob domínio dos separatistas pró-russos.
No total, os pensionistas ucranianos iam ao lado controlado pelo Governo de Kiev levantar o equivalente a 45 milhões de euros por mês, que depois eram gastos no lado controlado pelos separatistas. O Governo ucraniano avisou os reformados que as pensões vão começar a ser creditadas directamente nos seus cartões bancários, mas o problema mantém-se porque a maioria terá de passar o posto de controlo para usar as máquinas de ATM que ainda funcionam.
Sistema de saúde “frágil"
Igor Mitchnik, director de uma organização não-governamental ucraniana financiada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, calcula que o número de mortes por coronavírus na Ucrânia será “devastador”, apesar de o balanço actual ser inferior ao de outros países da Europa (804 casos e 20 mortes). E o problema será ainda maior nas regiões controladas pelos separatistas, onde os serviços públicos se degradaram mais rapidamente do que no resto do país.
“Mesmo em comparação com outros países da antiga União Soviética, o sistema de saúde ucraniano é notoriamente frágil e foi apanhado no meio de uma reforma. Os hospitais têm uma enorme falta de financiamento e o equipamento técnico está ultrapassado”, diz o director do centro Drukarnia num texto publicado no site Open Democracy.
“Para além disso, os hospitais têm falta de medicamentos e de pessoal, principalmente na linha da frente [da guerra civil], onde o acesso a hospitais de referência é limitado”, acrescenta Igor Mitchnik.
Se se confirmarem as piores previsões, os 6,6 milhões de habitantes nas províncias ucranianas de Donetsk e Lugansk podem vir a enfrentar, nos próximos meses, uma situação ainda mais dramática do que nos últimos seis anos.
De acordo com vários estudos, o impacto de um conflito armado nos sistemas de saúde contribui para um maior número de mortes numa situação de pandemia, em relação ao que aconteceria num período de paz. E, até agora, não há sinais de que os combates no Leste da Ucrânia venham a ser interrompidos por causa do novo coronavírus.
“Estamos perante uma crise humana que precisa de uma resposta humana”, disse a directora-adjunta da Human Rights Watch. “Os responsáveis ucranianos devem fazer tudo para reunir famílias o mais depressa possível, e garantir que todas as pessoas mantenham um distanciamento social em todos os postos de controlo. Entretanto, devem garantir que todas as pessoas que estão retidas possam ficar em condições dignas.”
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