O novo coronavírus virou o tabuleiro. Cabe-nos mudar as regras do jogo
Não é tolerável que, perante a atual crise climática que fustiga sobretudo os mais vulneráveis, e depois dos piores cenários de pandemia se terem concretizado na experiência brutal do novo coronavírus, voltemos ao mesmo jogo de sempre.
Não canso de me maravilhar com as transformações estonteantes que aconteceram nas últimas semanas. É hipnotizante como o vórtice de um tornado. A complexa lentidão das mudanças de comportamentos, as inquebráveis redomas dos interesses económicos, esses axiomas que lamentávamos e tentávamos roer com paciência de térmitas, foi tudo desmontado e descredibilizado. Escolas fechadas, ruas desertas, aviões no chão, teletrabalho massivo dizem-me que sim, somos mesmo feitos de plasticina.
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Não canso de me maravilhar com as transformações estonteantes que aconteceram nas últimas semanas. É hipnotizante como o vórtice de um tornado. A complexa lentidão das mudanças de comportamentos, as inquebráveis redomas dos interesses económicos, esses axiomas que lamentávamos e tentávamos roer com paciência de térmitas, foi tudo desmontado e descredibilizado. Escolas fechadas, ruas desertas, aviões no chão, teletrabalho massivo dizem-me que sim, somos mesmo feitos de plasticina.
Os vírus convivem com os humanos desde sempre, mas a emergência mais frequente de novos micróbios patogénicos, que se tem observado ao longo das últimas décadas, está relacionada com as pressões que a nossa economia produtivista exerce sobre a biologia do planeta. A pecuária industrial favorece o aparecimento de vírus mais letais; a área e os recursos que tomamos ao mundo selvagem encurtam o caminho entre os micróbios e os humanos. Por causa destas práticas, estamos hoje mais expostos ao risco de epidemias do que no passado (ainda que estejamos também mais bem preparados para lhes fazer face). Há aqui uma potencial lição a tirar, mas nem sequer é a mais pertinente.
Em meras semanas, soubemos prescindir de muitas coisas. Pelo bem maior de garantir condições para que as pessoas doentes tenham a assistência de que precisam, acatámos – desejámos – o estado de emergência, e deixámos que as instituições democráticas, num esforço coordenado, fechassem escolas, requisitassem espaço, nos impusessem limites – drásticos – sobre o que podemos fazer. Cumprimos com zelo, somos solidários. Sem fazer a apologia de um mundo sem festas e sem restaurantes, isto é a prova, se prova era necessária, de que vivemos sobre camadas de supérfluo. Enquanto o observamos furiosamente ao microscópio, eis o que o novo coronavírus revela sobre nós: uma sociedade é tão sólida quanto as suas instituições coletivas. Do que precisamos mesmo, agora e sempre, é do trabalho dos médicos, enfermeiros, cuidadores, agricultores, professores, investigadores, jornalistas. De governantes lúcidos e de um Estado apetrechado. E, já agora, do trabalho reprodutivo, sobretudo feminino e eternamente esquecido, de cuidar das crianças, limpar, cozinhar.
Não faltaram alertas sobre os riscos de uma pandemia global (o relatório do Johns Hopkins Center for Health Security, lançado mesmo antes do surto começar, é profético), assim como apelos ao aumento da capacidade dos sistemas de saúde pública mundiais. Mas o investimento público não está na moda. Está na moda dar espaço às soluções inovadoras do sector privado.
Outro departamento em que os relatórios de avaliação de risco se empilham é o do clima. Como Yuval Noah Harari disse ao PÚBLICO, “a crise do coronavírus deveria ensinar-nos o alto custo de ignorar os piores cenários”. A crise climática e ecológica já é bem mais letal do que o novo coronavírus e em pouco tempo poderá gerar perturbações muito mais intensas e duradouras. Estou a falar, por exemplo, do colapso do sistema alimentar num contexto de solos esgotados e de clima desregulado. Seria bom que nos resolvêssemos de uma vez por todas a investir na transição para não pagarmos dez vezes mais no futuro, ou compreendermos que não temos sequer com que pagar.
O novo coronavírus virou a sociedade do avesso, revelou as suas forças e fraquezas e até reduziu consideravelmente a poluição atmosférica. Mas começou logo por penalizar os mais desprotegidos, entre eles os sem-abrigo que perderam as redes de apoio e o pedaço de pão diário. Não o tomemos pelo justiceiro da natureza, o agente biológico que nos põe no nosso lugar e restabelece equilíbrios. Esse é o nosso trabalho. Quando o surto acalmar, se não assumirmos esse papel, volta tudo ao mesmo.
O jogo está suspenso, o tabuleiro ao contrário, os peões baralhados. Quando recomeçarmos – aqui reside a proverbial oportunidade das crises –, é imperativo mudar as regras do jogo. Vamos construir, exigir das instituições nacionais e internacionais um plano de salvamento e relance da economia que ponha em primeiro lugar cidadãos, saúde, bem-estar, ambiente e clima. Vamos exigir que o nosso esforço financeiro coletivo não sirva para voltar a pôr aviões no ar como se nada fosse. Para combater o desemprego que vai disparar, faz sentido um plano nacional de criação de empregos para o clima, para a saúde e para o cuidado das pessoas. Vamos mostrar que não somos parvos e que vimos, com esta crise sanitária, que os governos têm meios para agir, podem agir, e que a ação dá resultados. O campo do que é realista em termos de comportamento e de políticas públicas expandiu-se imenso. Não é tolerável que, perante a atual crise climática que fustiga sobretudo os mais vulneráveis, e depois dos piores cenários de pandemia se terem concretizado na experiência brutal do novo coronavírus, voltemos ao mesmo jogo de sempre.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico