O ensino universitário em tempos de isolamento
As medidas de combate à pandemia do novo coronavírus mantêm milhares de estudantes e docentes universitários em casa. São tempos estranhos e a situação é única, mas o ensino em tempos de isolamento não funciona de maneira igual para todos.
O despertador toca às 8h, às 10h, ao meio-dia ou nem toca de todo. Se o horário de um estudante universitário já era irregular antes de o novo coronavírus levar à suspensão das aulas presenciais, agora ainda mais o é. Pedro Miguel Oliveira estuda Ciências da Comunicação na Universidade do Porto (UP) e confirma ao P3 que “a rotina está a ser completamente fora do normal”. Sem o habitual período gasto em deslocações diárias, os estudantes acordam minutos antes das aulas e muitos apenas atravessam o quarto, indo de pijama da cama para a secretária.
Carolina Torneiro está a fazer o mestrado na ESADE Business School de Barcelona. Longe da família e a estudar num país que já ultrapassou os 8 mil mortos por covid-19, faz o que pode para manter a rotina o mais próximo possível do normal. Acorda às 8h30, faz ioga antes de tomar o pequeno-almoço e de se sentar no computador. Tal como os alunos das universidades portuguesas, diz que já “todo o conteúdo passou para o online”.
Online é, agora, o universo no qual operamos. Pelo mundo fora, os estudantes estão a ter aulas através de serviços como o português Colibri, que assenta sobre a plataforma Zoom desde 2017 e disponibiliza serviços de conferência à distância. Os alunos reúnem-se com os professores em videoconferência, podendo interagir com o microfone e a câmara ligados, por mensagem geral ou privada, respondendo a questões feitas em sondagens ou analisando os PowerPoint fornecidos pelos docentes através da partilha de ecrã.
Numa carta enviada aos universitários a 23 de Março, véspera do Dia Nacional do Estudante, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior confirmava que o serviço Colibri/Zoom, disponibilizado pela Unidade de Computação Científica Nacional da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT-FCCN), "continua a registar diariamente um acréscimo no número de utilizadores”. Esta segunda-feira foram cedidos dados actualizados ao P3 referentes a 27 de Março: 173.320 participantes em 9.171 aulas e reuniões. Para termos de comparação, em 2019 acediam, em média, 827 utilizadores por dia a um conjunto de 124 reuniões. Os totais deste mês de Março apontam para 104.321 reuniões/aulas e 1.946.057 participantes.
Idalina Jorge é investigadora no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Aposentou-se da docência recentemente, mas deu aulas durante muitos anos, incluindo online. Reflecte que “este é um tempo muito complicado para todos e que exige muita compreensão” — as falhas de comunicação são frequentes, gerando mal-entendidos evitáveis. E, por vezes, as indicações provêm de entidades com muito pouco conhecimento sobre como funciona o ensino online. A comunicação “está a ser vertical em vez de horizontal”, numa altura em que é preciso falar com os alunos e perceber o que precisam, porque “os estudantes também sabem o que resulta melhor ou pior”.
Tanto docentes como alunos, diz, têm de perceber que o ensino online não é uma replicação à distância do ensino em sala de aula. Exige muito trabalho de estudo autónomo porque “estão a ser feitas videoconferências de seis horas e isso não é praticável”. “Nem todos aprendem ao mesmo ritmo” e o recomendável seria marcar reuniões semanais para acompanhamento, esclarecimento de dúvidas e outros assuntos, e permitir aos alunos o desenvolvimento de competências autónomas — mas sem alguma vez os deixar desamparados. Há professores a passar “mais de dez horas em frente a um computador”, alerta Idalina Jorge, o que não é saudável.
Não é saudável e até pode nem ser possível. A ligação à Internet é assumida como obrigatória, mas nem todos os estudantes têm wi-fi em casa. É o caso de Filipa Silva, que no seu último ano em Línguas, Literaturas e Culturas na Faculdade de Letras da UP está a ter dificuldades em acompanhar as cadeiras. Conseguiu encontrar uma “solução”, mas receia que outros universitários estejam a ter o mesmo problema. “Como serão avaliados estes casos? Não sinto ser justo um colega não se licenciar este ano por não ter possibilidade de ter Internet em casa. É como se fosse um falso stand-by e, mesmo estando a trabalhar todos os dias para a faculdade, sinto que uma parte muito grande está em falta.”
Apesar das dificuldades, todos percebem que as aulas presenciais foram suspensas por uma “questão de saúde pública e de fazer o melhor pela comunidade”. As palavras são de Beatriz Teixeira; a meio da fase de exames do mestrado em Gestão da Nova School of Business and Economics, a estudante explica que a avaliação está a decorrer online e que “os professores fizeram tudo para garantir que era o mais natural e a melhor situação possível, dentro de uma situação que por si só é bastante negativa”.
Maria Melo, que tal como Beatriz estuda na Universidade Nova de Lisboa (UNL), mas na Faculdade de Ciências e Tecnologia, assegura que já estão “a ter vídeo-aulas em todas as cadeiras”. Na Faculdade de Engenharia da UP, a situação é a mesma. Eduardo Parracho (do mestrado integrado em Engenharia Electroctécnica e de Computadores) esclarece que tudo já foi “adaptado conforme necessário”: as aulas teóricas são feitas por videoconferência, “as laboratoriais estão a ser substituídas por vídeos feitos pelos professores” e “as avaliações vão passar a ser mais direccionadas para projectos e trabalhos”. Considera que os colegas “estão a aderir bem à nova situação” e que “há tanta ou até mais comparência nas aulas”.
Desequilíbrio enraizado
No entanto, o ensino superior no país não está a avançar a uma única velocidade: há turmas a serem deixadas para trás, anos, cursos e até faculdades. Ainda na UNL, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Inês Caseiro, estudante de Ciência Política e Relações Internacionais, tem cinco cadeiras e diz que cada professor lecciona à sua maneira. As videoconferências em espanhol tornam-se “extremamente confusas” dada a importância que “a participação oral” tem, aprendem alemão sozinhos a partir de um guião enviado “quase na totalidade” na língua estrangeira e as cadeiras de carácter teórico “são maioritariamente dadas com base nos textos obrigatórios”, sendo pedido aos alunos que construam um ensaio ou comentem as leituras num fórum.
Na Faculdade de Economia da UP, a adaptação parece estar um pouco “atrasada”, considera Filipe Simões. O estudante queixa-se que apenas a 23 de Março recebeu “um primeiro vídeo de uma unidade curricular”, não existindo ainda “aulas em directo por motivos distintos que não foram explicados”. Isto no curso de Economia, porque no de Gestão “há vídeo-aulas e bastante apoio ao aluno”. Aos alunos, a faculdade comunicou que cada docente poderá decidir como as suas aulas decorrem; desta forma, “há professores que ajudam e tentam cooperar e outros que não o fazem de todo”, condena Filipe.
Na Universidade de Aveiro, Gonçalo Matias, estudante de Engenharia Mecânica, explica que algumas turmas estão “em grande desvantagem”, apesar de esperar que a situação estabilize nos próximos dias: há professores que continuaram a dar as aulas e outros que apenas na semana passada se iniciaram no regime digital. Na Lusófona do Porto, as aulas também só retomaram na quarta-feira. No Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, segundo a estudante e dirigente académica Ana Beatriz Basílio, a associação de estudantes teve de “negociar com a direcção a adopção de aulas online" porque a suspensão das aulas presenciais foi feita sem qualquer outra indicação inicial.
Na Universidade de Coimbra, Guilherme Macedo diz que os estudantes de Direito estão a ter todas as aulas por videochamada. Já Beatriz Maia, no 2.º ano de Gestão, lamenta que apenas um dos professores tenha aderido às aulas online. Os jovens estão preocupados com a avaliação final; as frequências intercalares já foram canceladas e as faculdades, diz a estudante, estão “confiantes relativamente à existência de exames presenciais”, adiando as provas da época normal para a época de recurso e garantindo que será dado a “todos os alunos acesso à época especial”.
E a avaliação? E as aulas práticas?
Esta é, sem dúvida, a maior preocupação dos estudantes universitários neste momento; para esta reportagem foram entrevistados 23 jovens e a maior parte não sabe como vai ser avaliada. José Pedro Pimentel estuda Direito na Universidade do Minho e diz que ainda não tem “qualquer informação sobre como irá ser realizada a avaliação”. Reflecte que os testes online poderiam “incitar as fraudes académicas”, mas tem reservas quanto à existência de um único exame final presencial (“de três possibilidades de avaliação, passaríamos apenas para uma”).
Afonso Gabriel é finalista de Engenharia Mecânica na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Dentro do “que é controlável”, a principal melhoria a fazer seria, na sua opinião, “uma maior disponibilidade dos docentes para tirar dúvidas aos alunos” e a “disponibilização de exercícios resolvidos em formato PDF”. Germano Moreira está a fazer o seu mestrado em Engenharia Agronómica na Faculdade de Ciências da UP e aponta que seria importante as “faculdades criarem protocolos com estes programas” porque no Zoom “as videochamadas só duram 40 minutos”; para não ter limite de tempo, é necessária uma assinatura e “nem todos os professores a têm”, o que acaba por retirar “qualidade” às aulas.
É consensual que as aulas teóricas são as mais fáceis de adaptar a esta nova realidade. Algumas aulas práticas, contudo, podem nem ter solução em vista. Na Escola Superior de Media Artes e Design, os alunos sentem que vão ficar a perder e que, se as avaliações práticas passarem para puramente teóricas, não terão “tão bons resultados” no futuro. Alice Horta estuda Tecnologia de Comunicação Audiovisual também no Politécnico do Porto e admite ser “possível que todo o curso atrase um semestre” ou que venham a ter aulas no Verão. “Não sabemos, ninguém sabe. E a incerteza deixa-nos preocupados.” Em Design Industrial, Emanuel Sousa relembra pormenores como a incapacidade de digitalizar folhas A3 em casa, sendo preciso recorrer a fotografias tiradas com telemóvel, o que torna “mais complicado entender na totalidade os objectos e talvez leve a desentendimentos” na avaliação.
Na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, as preocupações também passam pelos detalhes que escapam facilmente a alguém de fora. “Como isto acabou por ser tudo muito repentino, houve muitas pessoas que deixaram o seu material e até os projectos pendentes na faculdade”. Tal está a obrigar os estudantes “a repensar projectos que já vêm a ser desenvolvidos desde o início do semestre ou a ter que começar de raiz”. Marta Areosa está no 4.º ano de Design de Comunicação e integra a associação de estudantes, que já realizou inquéritos para perceber quais as preocupações mais urgentes dos alunos. Apesar de salientar “que os professores têm feito um excelente trabalho nesta adaptação”, sente que os estudantes vão ficar prejudicados no domínio prático – este é o caso das oficinas de “cerâmica, mosaico e fundição”.
Também no ensino de desporto a componente prática é, obviamente, muito afectada. Na UP, grande parte da “prática desportiva central no currículo” não pode ser realizada, admite Raul Santos, do gabinete de comunicação da instituição. O que coloca “dificuldades” também na avaliação “se a situação se prolongar por muito tempo”. Gonçalo Brandão estuda no Instituto Universitário da Maia e confirma que “natação e ginásio são cadeiras” das quais ainda não houve — nem está previsto — qualquer tipo de aula, “nem a faculdade sabe como irão ser os métodos de avaliação”. Um sentimento geral sumarizado por Fernando Costa, estudante do 1.º ano de Ciências da Comunicação: “Enquanto estudantes, sentimo-nos algo perdidos por não termos informações sobre a forma como as coisas se vão desenrolar, apesar de ser uma situação bastante excepcional e de compreendermos que a posição dos professores também não é de todo fácil.”