“O sequestro de uma refém”: a segunda vítima do pedófilo literário Gabriel Matzneff fala
Francesca Gee viu-se presa numa relação com o escritor francês quando ela tinha 15 anos e ele 37. Os pais dela apoiaram, uma futura ministra da Saúde deu contraceptivos ao casal e, em 2004, todas as editoras rejeitaram o livro de denúncia.
O abalo provocado pelo caso Gabriel Matzneff na sociedade francesa, ao expor a sua pedofilia real e literária que estava já à vista de todos há décadas, teve uma única responsável: a editora Vanessa Springora. Até agora. Meses depois de a polícia francesa ter pedido que mais testemunhas ou vítimas avançassem, Francesca Gee juntou a sua voz à denúncia falando da relação tortuosa de três anos que mantiveram quando ela tinha 15 anos e ele 37. Contrariando o que o escritor admirado e premiado pelas elites relata na sua obra, onde descreve Springora e Gee como dois dos seus grandes amores.
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O abalo provocado pelo caso Gabriel Matzneff na sociedade francesa, ao expor a sua pedofilia real e literária que estava já à vista de todos há décadas, teve uma única responsável: a editora Vanessa Springora. Até agora. Meses depois de a polícia francesa ter pedido que mais testemunhas ou vítimas avançassem, Francesca Gee juntou a sua voz à denúncia falando da relação tortuosa de três anos que mantiveram quando ela tinha 15 anos e ele 37. Contrariando o que o escritor admirado e premiado pelas elites relata na sua obra, onde descreve Springora e Gee como dois dos seus grandes amores.
Francesca Gee ficou “exultante” quando soube de Le Consentement, o livro de Vanessa Springora que tudo mudou. “Ela fez o trabalho, já não tenho de me preocupar com isso. Mas passada uma semana ou duas, percebi que faço parte desta história”, disse ao New York Times numa série de entrevistas. Ex-jornalista hoje com 62 anos, diz viver torturada pelo facto de durante três anos ter tido uma relação que a polícia francesa, com a qual já falou depois do apelo lançado em Janeiro, descreveu como “um sequestro de uma refém”. Não conhece Springora, mas tem uma experiência muito semelhante à da editora que criou um best-seller a partir da sua tragédia pessoal em plena viragem do clima sobre os crimes sexuais e o consentimento em França.
Tal como a autora de Le Consentement, tentou escrever um livro sobre o assunto e viu a sua história plasmada na obra de Matzneff como uma espécie de apologia das relações com menores — com a agravante de Matzneff ter usado a sua imagem e as suas cartas, sexualmente explícitas e que redigia a pedido do escritor, sem permissão. “Hoje considero que me foram extorquidas e usadas como arma contra mim”, diz Francesca Gee. Algumas estão em Les Moins de Seize Ans, a famosa defesa das relações com menores de ambos os sexos escrita por Matzneff em 1974 e que até há meses estava no mercado. Outras são o recheio de um livro que tem como capa o seu rosto adolescente.
Trata-se de Ivre du vin perdu (1983), editado pela prestigiada Gallimard — editora que só no início de Janeiro, em plena ignição do escândalo nacional diferido provocado pelo livro de Springora, mandou retirar a obra apologista da pedofilia (e outros escritos) que publicou de Matzneff. “Sou perseguida por esta imagem de mim, que é como um duplo malévolo”, disse Gee ao New York Times.
Foi ela que contactou o jornal que denunciou em primeira mão o caso Harvey Weinstein, quebrando um silêncio de 44 anos. Vive no Sul de França; Matzneff está refugiado num hotel de luxo no Sul de Itália desde o início do ano, dizendo lamentar sobretudo que aquelas que dizem ser suas vítimas não se revejam, como ele, numa descrição romântica das relações sexuais e de poder que mantiveram.
Aos olhos de muitos
Tal como Vanessa Springora, Gee conheceu Matzneff através dos pais, que o convidavam para jantares em sua casa, encandeados pela presença de tal luminária intelectual. “Isso era mais importante do que olhar para os efeitos secundários da pedofilia”, lamenta Gee no artigo publicado na terça-feira. O pai, jornalista britânico, autorizou a relação da filha com o escritor e não a protegeu do isolamento a que Matzneff votava a menina.
A relação envolveu, como o relato anterior de Springora já demonstrava, o apoio directo ou indirecto de uma rede de pessoas — uma ginecologista, que viria a tornar-se ministra da Saúde do segundo governo de Jacques Chirac sob a presidência de François Mitterrand nos anos 1980, prescreveu-lhe a pílula. Sem autorização dos pais, o que era ilegal, mas sim na presença de Gabriel Matzneff nas consultas, por exemplo.
Matzneff escreveu sobre as idas à médica nos seus agora infames diários em que, para todo o mundo literário ver, relatava os seus casos com menores de ambos os sexos e onde frisou que a médica, Michèle Barzach, também futura responsável do braço francês da UNICEF, “nunca sentiu ter de dar lições a um homem de 37 anos e sua amante de 15”. Não foi a única. Gee relata como Matzneff usou a sua influência para a mudar para uma escola mais perto de sua casa, esperando-a diariamente, isolando-a dos amigos.
Amnésia moral
Francesca Gee é apenas a segunda voz a juntar-se publicamente às acusações sobre Matzneff e isso é também emblemático do momento e das especificidades francesas. Bastou um livro no timing pós-MeToo para revolver uma realidade que, na esteira do Maio de 1968, servia a um pequeno grupo para incluir a pedofilia no “é proibido proibir” e que depois se deixou ficar numa espécie de relativismo, inércia ou amnésia moral.
É que em 2004, Gee tentou também contar a sua história ao público. Entregou um manuscrito que queria que fosse livro, onde contava a relação encetada em 1973 e finda em 1976, a várias editoras. Muito antes do efeito #MeToo, descrevia assim a relação: “Um cataclismo que me despedaçou quando tinha 15 anos e que mudou o rumo da minha vida”. O resultado foi sentir-se “envergonhada, amargurada e confusa”.
Mas não foi aceite por qualquer editora, nomeadamente a Albin Michel, uma chancela importante que pareceu receptiva — até deixar de estar. O New York Times cita uma carta do editor Thierry Pfister em que declina a possibilidade de publicar a obra porque, afinal, Matzneff era parte da elite de Saint-Germain-des-Prés, do meio literário, “com a sua rede, os seus amigos”, descreve agora o próprio Pfister ao diário nova-iorquino. Admite que a Albin Michel não quis “altercar-se com aquele grupo”. Diz ter “falado a favor dela” mas os membros da comissão editorial discordaram. O mesmo aconteceu na Grasset, que em Janeiro publicou Le Consentement — havia “próximos de Matzneff” no conselho editorial.
Geneviève Jurgensen, editora na Bayard (que também rejeitou o manuscrito), diz hoje ao New York Times que o livro “claramente” chegou “15 anos cedo demais. O mundo ainda não estava pronto”.
Em Setembro de 2021, Gabriel Matzneff, hoje com 83 anos, será julgado por defender o crime de abuso de menores graças a um processo movido por uma associação que considera que os seus escritos são responsáveis por isso mesmo. Francesca Gee corroborava-o já em 2004: “Ele usou-me para justificar a exploração sexual de crianças e adolescentes”.
Gee libertou-se da relação aos 18 anos, mais madura e autónoma. Só na década de 1990 diz ter compreendido verdadeiramente o que lhe aconteceu 20 anos antes. Foi aí que, diz, terá exigido a Matzneff que retirasse o seu rosto e os seus textos da sua obra. Dez anos depois, ele tentou obter permissão para a identificar como inspiração para Ivre du vin perdu, o que ela recusou; diz só não ter processado a Gallimard pelas custas judiciais. Agora, está a trabalhar num novo livro sobre Gabriel Matzneff.