Os corvos que para aí andam
A luta contra a pandemia não é uma pausa na vida democrática, não fez desaparecer a ameaça existencial que a extrema-direita representa para a liberdade, nem o vírus nacionalista, como vimos nas “repugnantes” declarações do governo holandês.
Pelo mundo inteiro, milhões de cidadãos vivem confinados. Os pássaros de Hitchcock tornaram-se realidade. Os corvos, que aparecem por todo o lado, têm agora o nome de um vírus; os outros corvos a que o filme alude, e que são hoje os do neofascismo, aguardam a sua vez.
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Pelo mundo inteiro, milhões de cidadãos vivem confinados. Os pássaros de Hitchcock tornaram-se realidade. Os corvos, que aparecem por todo o lado, têm agora o nome de um vírus; os outros corvos a que o filme alude, e que são hoje os do neofascismo, aguardam a sua vez.
Na macabra contabilidade dos número de mortes, anunciada como as cotações na bolsa que as acompanha na queda, o medo vira terror em noticiários sensacionalistas. Na rua onde estou confinado, a vizinha da casa da frente — de onde me chega o som em contínuo da televisão —, com a terrível idade da população em alto risco, como somos lembrados constantemente, alerta-me: “Vizinho, veja a televisão, que medo, é terrível!” Medo do vírus, mas cada vez mais de um futuro de miséria, na maior recessão desde a que devastou os anos 1930.
Na Europa, os governos procuram canalizar o medo para impor medidas de emergência no combate à pandemia e fazem apelos à “união da nação”. Herdeiros do estado-providência, muitos governos, socialistas e do centro, tomam medidas para garantir os salários aos confinados, e salvar as empresas.
A gripe espanhola já foi há 100 anos, e a peste negra pertence aos livros de História. As referências usadas são as da guerra e os discursos inspirados nos líderes que a venceram. Metáfora perigosa.
É bom lembrar que a extrema-direita, na Europa, renasceu da propagação do medo contra os muçulmanos e os migrantes, facilitada pela chamada guerra contra o terrorismo, da “guerra de civilizações”, do nós e eles que todas as guerras criam.
A extrema-direita tentou, sem sucesso, transformar a luta contra a pandemia numa cruzada racista, como Salvini que afirmou que o vírus tinha sido introduzido por migrantes africanos, e Trump que arengou contra o “vírus chinês” e tomou medidas de exceção contra os migrantes.
O estado de emergência tornou a extrema-direita na oposição inaudível, mas os seus líderes esperam que as medidas que limitam as liberdades habituem os cidadãos à ideia de que a autocracia é o sistema que melhor os protege. Exacerbando um discurso securitário à base de catastrofismo e teorias da conspiração, acreditam que o exemplo chinês lhes pode ser favorável.
O poder chinês, que começou por esconder a existência do novo coronavírus, impôs medidas de controlo dos cidadãos, acedendo aos seus telemóveis e vigiando, através de câmaras de reconhecimento facial, as suas deslocações, como já vinha fazendo.
O autocrata Orbán, na Hungria, mostra bem como a extrema-direita pensa aproveitar-se da crise, procura impor o estado de emergência por tempo ilimitado e penas pesadas a jornalistas.
As posições obscurantistas de Trump e de Bolsonaro, tentando negar a evidência científica, não são um exemplo que ajude a extrema-direita europeia. Se Trump decidiu, em ano eleitoral, assumir a posição de Presidente de Guerra, ambos, em declarações e atitudes criminosas, desvalorizam a pandemia e o número de mortos para salvar as bolsas e os seus interesses.
Para derrotar o vírus em democracia, para vencer a paralisia que o terror cria, é indispensável ter confiança nos cidadãos, garantir uma informação rigorosa e mostrar que a pandemia pode ser vencida. As medidas de exceção devem ser transitórias e sempre aplicadas no respeito pelo Estado de direito e pela liberdade de informação.
Da acção da União Europeia dependerá, em boa medida, o resultado deste teste dificílimo que enfrentam as democracias liberais.
A União Europeia, depois de todas as hesitações iniciais, tem tomado medidas sem precedentes para proteger o sistema financeiro e o mercado único. Medidas insuficientes, uma vez que é preciso mutualizar a divida e criar um mega-fundo europeu para proteger todos os europeus, sem exceção e socorrer os países mais carenciados. A Alemanha e os seus preconceituosos aliados têm de assumir que é a hora da Europa. Como declarou Jacques Delors, a falta de solidariedade é um perigo mortal.
Mais, a União Europeia tem sido negligente no domínio da ajuda humanitária, o que é incompreensível, dado que esse foi um domínio privilegiado da sua ação internacional. É inadmissível que os apelos de Itália tenham ficado sem resposta. Perante as insuficiências da União Europeia surgem a China e mesmo a Rússia, com operações de socorro humanitário.
Os neofascistas esperam que a crise reforce o nacionalismo, o “salve-se quem puder”, que as fronteiras que hoje se fecham não voltem a abrir. Desejam também que se prove a inutilidade da União Europeia e das organizações mundiais para nos proteger.
Mas outro destino é possível. Desta pandemia pode sair uma Europa mais democrática e fraterna, liberta do dogma do neoliberalismo, mais determinada e eficaz na defesa da vida na casa comum que é a Terra. Em suma, que a comunidade das Nações democráticas da Europa volte a ser uma esperança para o Mundo.