Covid-19 em África: escapar à doença para morrer à fome
Sobreviver para muita gente no continente africano é uma questão diária, ficar em casa é não ter o que comer. Mesmo assim, na sua generalidade, os governos estão a recorrer ao isolamento social para travar a pandemia.
A população do Zimbabwe vive na fila. Numa economia depauperada em crise prolongada, os cidadãos fazem fila para conseguir dinheiro no banco, para meter combustível nos automóveis, à porta dos supermercados que receberam farinha de milho, parte essencial da parca dieta diária das famílias. Como se mantém “distância social” num país onde as regras da sobrevivência ditam precisamente o contrário?
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A população do Zimbabwe vive na fila. Numa economia depauperada em crise prolongada, os cidadãos fazem fila para conseguir dinheiro no banco, para meter combustível nos automóveis, à porta dos supermercados que receberam farinha de milho, parte essencial da parca dieta diária das famílias. Como se mantém “distância social” num país onde as regras da sobrevivência ditam precisamente o contrário?
Mesmo assim, o Governo de Emmerson Mnangagwa ordenou o isolamento das pessoas em casa por um período de 21 dias desde esta segunda-feira. O país tem apenas registados oito casos de infecção por coronavírus, que resultaram num morto, mas com um serviço de saúde incapaz de responder às necessidades quotidianas mais básicas, será impossível lidar com um aumento de doentes de covid-19. Como escrevia o jornal sul-africano Mail & Guardian, “é difícil pensar noutro país, fora de uma zona de guerra, mais mal preparado para uma pandemia desta dimensão”.
“Apesar de os nossos números se manterem baixos, existe a possibilidade de uma maior propagação e contágios comunitários. Além disso, em dois meses, virá o Inverno, criando condições ideais para mais infecções. É preciso tomar medidas necessárias contra a pandemia agora”, afirmou Mnangagwa.
Sam Wadzai, da associação de vendedores, reconhece, em declarações à emissora Voz da América, a necessidade de isolamento, salientando, no entanto, que o Governo tem de criar mecanismos para as “pessoas sobreviverem durante o período do isolamento” e terá de o fazer “o mais depressa possível para as pessoas não morrerem à fome”.
A fome foi o argumento usado pelo Presidente do Benim para justificar a decisão de não ordenar o isolamento social. Reconhecendo que “a situação é realmente grave e o risco grande”, Patrice Talon perguntou: “Quantas pessoas no Benim têm um salário mensal para poder aguentar duas, três ou mesmo quatro semanas sem trabalhar e viver dos rendimentos do mês?”
Medidas de isolamento geral seriam contraprodutivas, disse Talon, porque iriam “matar à fome toda a gente e durante muito tempo”. Isso não quer dizer que o país, com seis casos (um deles já recuperado), não tenha adoptado medidas para contrariar a disseminação do vírus, isolando 12 comunidades até 12 de Abril, colocando cercas sanitárias nas áreas mais atingidas.
Mas, é como se diz em Kinshasa, obimi te okolia te (quem não sai, não come), daí que o isolamento total intermitente (levantado de tempos a tempos para a compra de comida) decretado pelo Presidente Félix Tshisekedi para a capital da República Democrática do Congo, que deveria ter começado no sábado e durado três semanas, acabou por ser adiado sine die. Com o preço dos alimentos a duplicar de um momento para o outro, e mesmo tendo anunciado dois meses de água e luz grátis na capital, as autoridades não quiseram arriscar.
A RD Congo conta apenas com 83 casos, mais de metade só nesta semana e com uma alta taxa de mortalidade: morreram oito pessoas, seis delas nos últimos sete dias. Os números são do Centro de Controlo de Doenças da União Africana, que divulgou o relatório semanal da pandemia esta terça-feira. Em África registaram-se até agora 5287 casos de covid-19 – com 172 mortos e 383 curados –, em 48 países (o último a entrar para a lista, esta terça-feira, foi a Serra Leoa), 28 deles com transmissão local.
Somente seis países continuam ainda sem qualquer caso confirmado: Burundi, Comores, Lesotho, Malawi, São Tomé e Príncipe e Sudão do Sul. Também não há nenhum caso confirmado no Sara Ocidental, território ocupado por Marrocos.
As zonas do continente mais afectadas pela pandemia continuam a ser o Norte de África e a África do Sul, embora a maior percentagem de mortes (69%) se concentre de Marrocos ao Egipto, os sul-africanos tem o maior número de infectados num só país: 1326 (dois mortos).
Contabilização ainda relativamente baixa, face a outros continentes, mas receio muito alto, porque as autoridades sanitárias já alertaram que o pior está por chegar. Daí as medidas drásticas implementadas em muitos países. Aplicadas até com recurso a medidas mais extremas de violência – com relatos de mortes no Uganda, no Ruanda (o Governo nega que as mortes estejam relacionadas com a covid-19), uso excessivo de força na África do Sul, no Quénia.
Uma crise sanitária em África é sempre uma crise de governança, porque as epidemias mostram o estado frágil das infra-estruturas de saúde e o desespero e a raiva acabam por se virar contra as elites políticas. Os protestos podem redundar em violência, repressão e chegar mesmo a derrubar governos.
Mão dura para impor medidas drásticas é uma arma de sobrevivência política para os meses difíceis que se aproximam, com o impacto social e económico da pandemia. O think tank Overseas Develop Institute calculou 100 mil milhões de receitas perdidas este ano só na África subsariana.
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