Como combater o inimigo epidémico invisível e vencer?

O desafio que temos pela frente é gerir esta necessidade de cuidados hospitalares através de medidas de prevenção de transmissão, com o menor impacto possível nas nossas vidas, enquanto ganhamos tempo.

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EPA/NIAID

Imagine a nossa vida há uns meses. Trabalhar, ir à escola, tomar um café, visitar família e amigos. Nos últimos dias temos uma vida muito diferente. Contudo, se ainda não interiorizou totalmente este processo de distanciamento social, poderá verificar ao longo deste artigo que a contenção não só tem que existir, como terá que ser firme, eficaz e acentuada. De facto, de acordo com o nosso modelo, para gerir a epidemia é necessária uma redução de contactos sociais susceptíveis de transmissão do vírus de pelo menos 85%. Vamos ver porquê.

Há mais de 100 anos, a 30 de Maio de 1919, publicava-se na revista científica Science um artigo com o título “As lições da pandemia”. Esta pandemia, associada à gripe de 1918, e frequentemente denominada “gripe espanhola” ou “peste pneumónica”, foi causada por uma estirpe do vírus influenza que contaminou mais de 500 milhões de pessoas (27% da população mundial na época) e estimando-se ter feito milhões de vítimas mortais em todo o mundo. Nessa publicação foram descritos três fatores que promoveram o contágio: 1) indiferença por parte da população, isto é, as pessoas não tinham a consciência do risco que corriam; 2) características das medidas a implementar, em particular, a dificuldade em eliminar os vestígios de contaminação deixados pelo vírus; e 3) período de incubação variável durante o qual uma pessoa qualquer podia transmitir o vírus sem o saber.

Um século depois a situação com a pandemia associada ao vírus SARS-CoV-2 que causa a doença covid-19 não é muito diferente. Trata-se igualmente de uma infeção respiratória, mais contagiosa do que a gripe de 1918 e acelerada hoje pela mobilidade da população à escala global. Atualmente, de acordo com o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças, 80% das pessoas contagiadas desenvolvem sintomas leves e recuperam, 14% apresentam sintomas mais severos e 6% necessitam de cuidados intensivos. Neste contexto, a pergunta que se segue é a seguinte: como combater este inimigo invisível?

A solução ideal é o desenvolvimento de uma vacina contra a covid-19, ou algum tipo de medicamento que minimize ou elimine a infecão. Neste momento, sabemos existirem mais de 20 vacinas em desenvolvimento. Porém, teremos de esperar provavelmente entre 12 e 18 meses para que esteja disponível uma vacina testada com segurança no ser humano e produzida em massa. Neste sentido, dadas as características de transmissão do vírus por contacto direto ou indireto entre humanos, a única solução imediata é adotar medidas de contenção social acentuadas.

Para melhor entender este processo de contenção social, olhemos para o caso de Wuhan, na China. Inicialmente, o número básico de reprodução (conhecida como fator “R zero”, R0) em Wuhan foi cerca de 2,4, ou seja, quando a epidemia começou, cada pessoa portadora do vírus infetava em média 2,4 pessoas sãs, antes de conseguirem recuperar.

Neste sentido, o objetivo de qualquer medida de prevenção ou intervenção governamental é reduzir o valor R0 para um valor efetivo de reprodução (“R efetivo”, Re). Se o governo de Hubei, responsável pela cidade de Wuhan, não tivesse tomado quaisquer medidas de contenção e os chineses não alterassem os padrões de comportamento, o vírus continuaria a fazer o seu trabalho. De facto, no caso de Wuhan, mesmo com distanciamento social, enquanto o fator Re fosse superior a 1, o surto propagar-se-ia até que cerca de 60% da população sobrevivente adquirisse imunidade. Contudo, com a taxa de mortalidade verificada, este seria um cenário com muitos milhares de mortes em poucos meses. Portanto, para combater o vírus e eliminar o surto seria absolutamente necessário estabelecer um valor de Re inferior a 1, ou seja, estabelecer um patamar onde uma pessoa portadora do vírus infectaria em média menos de uma pessoa sã antes de recuperar. Com este valor de Re inferior a 1, o número de casos recuperados ultrapassaria o número de novos infectados, eliminando eventualmente o surto. O que foi feito em Wuhan?

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REUTERS/Yves Herman

No dia 7 de Janeiro, o novo coronavírus (SARS-CoV-2) foi pela primeira vez identificado. Estava já a provocar uma pneumonia misteriosa. Após perceberem o alto nível de contágio, as primeiras medidas de contenção social foram aplicadas em Wuhan no dia 23 de Janeiro. Em particular, os transportes (aviões, comboios e autocarros) para e saídos de Wuhan foram cancelados, as estradas cortadas, e os residentes proibidos de viajar sem uma justificação especial. Com estas medidas e o reforço no distanciamento social no início de Fevereiro, em particular o cancelamento do novo semestre de aulas, cerimónias fúnebres, filmagens e a quarentena obrigatória (em cada agregado familiar apenas uma pessoa podia ir ao supermercado de três em três dias), o valor de Re estimado foi baixando progressivamente de 2,4 para menos de 1. Daí o decréscimo significativo do número de casos infetados e o controle total da epidemia em apenas dois meses desde as primeiras medidas de contenção. Todavia, para manter este estado de controlo, a China continua a colocar em quarentena qualquer pessoa que chegue do estrangeiro.

O que podemos prever para Portugal? Para responder a esta pergunta, consideramos um modelo de transmissão de SARS-CoV-2 descrito num estudo orientado por Ganna Rozhnova, co-autora deste artigo, e aplicado muito recentemente para compreender as epidemias de covid-19 na Europa. Para a nossa estimativa, consideramos os casos identificados em Portugal entre os dias 2 de Março (quando foram identificados os primeiros casos) e 18 de Março (quando foi declarado o estado de emergência), e entre 19 de Março e 28 de Março (após o estado de emergência até ao momento), aos quais ajustamos o modelo, como indica a figura 1.

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Figura 1: Número de casos confirmados ativos até dia 28 de Março (pontos azuis até ao dia 18 de Março e pontos laranja já no estado de emergência). A curva a vermelho representa o ajuste do modelo aos casos confirmados até ao dia 28 de Março

Seguidamente, examinamos a evolução da propagação do vírus tendo em conta três cenários distintos, em particular 1) o número de casos confirmados ativos, se não for aplicada nenhuma medida de distanciamento social; 2) o número de casos confirmados ativos considerando uma redução de contactos sociais em 75%; e 3) o número de casos confirmados ativos considerando uma redução de contactos sociais em 90%. No nosso modelo estes números de casos confirmados ativos correspondem aos casos diagnosticados, que têm sintomas severos e podem precisar de atenção médica.

Estes valores de 75% e 90% na redução de contactos sociais susceptíveis de transmissão do vírus foram consideradas dadas as medidas progressivas do Governo português iniciadas no dia 16 de Março com o fecho de todas as escolas/universidades e o cancelamento de eventos públicos, e reforçadas no dia 18 de Março​ com a instauração do estado de emergência nacional. Como referência, usamos o trabalho de J. Mossong e co-autores, que descreve que uma pessoa a viver na Europa faz contacto diário com cerca de 14 outras pessoas. Destes contactos, 23% são em casa, 21% no trabalho, 14% na escola, 3% nos transportes, 16% em atividades de lazer, 15% noutras atividades (para além das anteriores) e 8% para localidades múltiplas (pessoas expostas durante o dia em várias localidades).

Os resultados podem ser consultados nas figuras 2 e 3. Nos casos da figura 2, o valor de Re é superior a 1, mesmo com uma redução de 75%. Ainda assim, com esta redução, ganharíamos algum tempo para nos prepararmos, relativamente ao caso sem qualquer distanciamento social. Para além disso, o número total de infetados seria significativamente menor. Contudo, dado que o valor de Re é ainda superior a 1, o vírus continuaria a propagar-se até atingirmos imunidade de grupo, embora mais lentamente.

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Figura 2: Número de casos confirmados ativos ao longo do tempo, se não for aplicada nenhuma medida de distanciamento social (curva vermelha), e com uma redução de contactos sociais susceptíveis de transmissão do vírus em 75% (curva azul)

Como a única solução para controlar a epidemia no curto prazo é diminuir Re para valores inferiores a 1, o nosso modelo indica que é necessária uma redução de contactos sociais susceptíveis de transmissão do vírus em pelo menos 85%. Segundo o nosso modelo, estamos com efeitos médios de contenção social de cerca de 50%, desde o dia 19 de Março até ao dia 28 de Março. Para entender o impacto destas medidas de contenção na evolução diária do número de casos confirmados ativos, a Figura 3 que considera uma redução de 90% a partir de 28 de Março é bastante elucidativa. Com esta redução, o pico seria atingido a 11 de abril com um número de casos confirmados ativos de 12029 dos quais, de acordo com o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças, provavelmente 30% (3608) venham a necessitar de cuidados intensivos. É importante realçar que a curva a azul indicada na figura 3 assume medidas de contenção social inalteradas ao longo do tempo.

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Figura 3: Número de casos confirmados ativos ao longo do tempo para o caso de uma redução de contactos sociais susceptíveis de transmissão de 90%

Neste contexto, o desafio que temos pela frente é gerir esta necessidade de cuidados hospitalares através de medidas de prevenção de transmissão, com o menor impacto possível nas nossas vidas, enquanto ganhamos tempo até que uma vacina ou cura estejam disponíveis para todos. Após controlada a epidemia em Portugal, teremos que nos manter vigilantes e continuar a gerir as nossas interações com o exterior para evitar novo surto. Afinal de contas, apesar do tremendo desafio que nos surgiu com este vírus, este surto é uma oportunidade para por à prova a capacidade de cooperação, união e cidadania dos portugueses e de toda a humanidade.

Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico