O vírus quer entrar na cadeia, mas nós não podemos deixar!
A população dos estabelecimentos prisionais, com a sua carga desproporcional de doenças, não pode ser esquecida nesta situação de pandemia em que vivemos.
Já todos percebemos que a epidemia causada pelo coronavírus afeta todo o mundo, mas provavelmente nem todos perceberam que não afeta a todos da mesma maneira.
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Já todos percebemos que a epidemia causada pelo coronavírus afeta todo o mundo, mas provavelmente nem todos perceberam que não afeta a todos da mesma maneira.
Os sem abrigo, os desempregados, entre muitos outros segmentos da nossa sociedade sofrem muito mais os efeitos da pandemia que outros.
Hoje queria dedicar umas palavras a um segmento da população que é muitas vezes esquecido, mas que poderá sofrer os efeitos da pandemia de forma severa. Falo da população prisional.
O cumprimento de uma pena de prisão não se deve a um ato aleatório, mas sim a uma decisão ponderada e fundamentada de um juiz que teve em consideração os factos praticados e as provas apresentadas.
Por outro lado, estar em prisão preventiva deve-se ao cumprimento de critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade tidos em conta por um juiz de instrução considerando o caso em concreto.
Quem está em cumprimento de pena de prisão são pessoas que praticaram factos que a sociedade entende serem demasiado gravosos e, por isso, deverão estar a sofrer as consequências desses atos. Mas não podemos esquecer dois aspetos fundamentais: trata-se de seres humanos e, além disso, estão a ser punidos pelo que fizeram e a serem ressocializados para voltar a viver em sociedade, nos termos que são indicados no Código Penal Português.
O estado da saúde nas prisões é uma preocupação que temos de longa data. Questões relacionadas com a saúde mental nos estabelecimentos prisionais, por exemplo, são questões que deveriam merecer uma maior atenção. Mas este não é o momento para falar sobre isso. Neste momento a maior preocupação está relacionada com as doenças infectocontagiosas.
Vários estudos demonstram que as doenças infectocontagiosas dentro das prisões são um grave problema de saúde pública. Doenças como a tuberculose ou o VIH são um flagelo dentro dos estabelecimentos prisionais.
As prisões devem ser vistas como ambientes em que as intervenções de saúde podem abordar as condições de saúde existentes e contribuir para estilos de vida e mudanças de comportamentos positivos. A população dos estabelecimentos prisionais, com a sua carga desproporcional de doenças, é uma que não pode ser esquecida nesta situação de pandemia em que vivemos.
Recentemente, a Organização Mundial da Saúde/Europa publicou orientações provisórias sobre como lidar com a covid-19 em prisões e outros locais de detenção. Essas orientações fornecem informações úteis aos funcionários e prestadores de cuidados de saúde que trabalham em prisões e às autoridades penitenciárias. Explica como prevenir e solucionar um possível surto da doença e enfatiza importantes elementos de direitos humanos que devem ser respeitados na resposta à pandemia em prisões. O acesso à informação e a provisão adequada de assistência médica, inclusive para transtornos mentais, são aspetos essenciais na preservação dos direitos humanos nesses locais.
O controle da propagação da infeção nessas configurações é essencial para evitar grandes surtos de covid-19.
Em Portugal, a Direção Geral dos Serviços Prisionais e Reinserção Social começou a tomar medidas para evitar que a covid-19 invada as nossas prisões. Entre outras medidas, destaco a separação de reclusos por grupos de risco, a criação de rotinas diárias com horários alternados, suspensão provisória de trabalho exterior, ações de formação ou saídas de curta duração, suspensão de transferências entre estabelecimento prisionais, bem como a possibilidade de serem criadas zonas de contenção ou quarentena alargada.
A Amnistia Internacional, atenta a estas questões, já veio alertar os países a adotarem medidas que protejam os prisioneiros desta pandemia. Contudo, nunca poderemos esquecer que as razões que determinaram a aplicação da pena de prisão ou a aplicação de prisão preventiva não se alteraram em consequência da covid-19. Na verdade, o facto de existir uma pandemia, por si só, não é fundamento para a libertação imediata de pessoas detidas. As medidas a adotar são de proteção da saúde dos prisioneiros e não de libertação dos prisioneiros. Libertar pessoas que cometeram crimes e que são perigosas para a sociedade seria uma atitude incompreensível para a população em geral. Não podemos correr o risco de ter uma pandemia em curso e uma convulsão social em simultâneo. Deixar os prisioneiros ir para casa não é a solução. Alguém conseguiria explicar isto às vitimas de abusos sexuais, violação ou de violência doméstica?
A ponderação dos direitos em jogo terá de imperar. Como dizia Fernando Pessoa, “o sentimento abre as portas das prisões com que o pensamento fecha a alma” e, se sentir é compreender, sinto que devemos ponderar.
Em tempos de pandemia, muitas das questões que se colocam para proteção da saúde dos prisioneiros não suscitam tantas dúvidas como em tempos de normalidade. Provavelmente, serão estes tempos que permitirão a adoção de medidas que já deveriam ter sido tomadas e que a normalidade não dava abertura para isso. Quando a bonança chegar será o tempo de discutir essas mesmas medidas relacionadas com a saúde pública e saúde mental nos estabelecimentos prisionais, com a esperança de que já não sejam tão controversas. A saúde pública agradece.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico