No relógio da pandemia, é a hora da Europa

A indecisão do Conselho Europeu de 27 de março é uma traição aos cidadãos da União. Sim, aos cidadãos da União, porque – convém lembrá-lo à exaustão – a pandemia não olha a nacionalidades nem se atemoriza com fronteiras.

Na Europa, quando uma pandemia (que é uma crise global) é atacada ao nível nacional, é sinal da decadência dos países, não da Europa. Sinal da decadência da Europa idealizada pelos países, os seus tutores, que a mantêm acorrentada à trela. São os países que instrumentalizam a Europa aos seus interesses egoístas. Não é surpresa que os países, amordaçados pelo pânico, voltem as costas uns aos outros e extingam uma réstia de Europa. Quando a crise ataca a Europa e não é atacada pela Europa, é sintoma da Europa sitiada pelos países. Uma pandemia atravessa as fronteiras e, como resposta política, os países encerram as fronteiras e hasteiam o ensimesmar nacional. Quem ousa acusar a Europa de incapacidade, se são os países, os tutores desta Europa faz-de-conta, que retiram a Europa do palco?

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Na Europa, quando uma pandemia (que é uma crise global) é atacada ao nível nacional, é sinal da decadência dos países, não da Europa. Sinal da decadência da Europa idealizada pelos países, os seus tutores, que a mantêm acorrentada à trela. São os países que instrumentalizam a Europa aos seus interesses egoístas. Não é surpresa que os países, amordaçados pelo pânico, voltem as costas uns aos outros e extingam uma réstia de Europa. Quando a crise ataca a Europa e não é atacada pela Europa, é sintoma da Europa sitiada pelos países. Uma pandemia atravessa as fronteiras e, como resposta política, os países encerram as fronteiras e hasteiam o ensimesmar nacional. Quem ousa acusar a Europa de incapacidade, se são os países, os tutores desta Europa faz-de-conta, que retiram a Europa do palco?

Os responsáveis políticos são o desassombro de reinventar o presente sob o jugo de uma pandemia sem precedentes na era moderna, uma pandemia servida na bandeja da globalização, que a acelerou. O palco que lida com a pandemia e com o seu rescaldo não pede regedores paroquiais. Exige políticos que o sejam, políticos que não se acovardem na estreiteza da geografia pátria. Políticos com visão transfronteiriça e holística dos problemas que se colocam e dos desafios que vão ser a âncora das decisões.

A indecisão do Conselho Europeu de 27 de março é uma traição aos cidadãos da União. Sim, aos cidadãos da União, porque – convém lembrá-lo à exaustão – a pandemia não olha a nacionalidades nem se atemoriza com fronteiras. Se há altura em que a solidariedade entre os europeus (cidadãos, governos e instituições da UE) ganha significado e se apresenta como exigência irrecusável, é esta. Se a partilha de riscos já se justificava na crise da zona euro, que foi uma crise assimétrica, mais se justifica agora: a crise é simétrica, atinge todos os países da União, se bem que em doses variáveis. A tibieza dos líderes nacionais, o mesquinho contabilizar de eventuais perdas e ganhos para se vingar a solidariedade através de coronabonds (ou pandemiabonds, o nome é o que menos interessa), é a prova da condição medíocre de quem compromete (já) o plano de contingência e a futura recuperação das economias.

É uma Europa descarnada? Sim, por causa de quem a mantém acorrentada à trela. Dá o mote para reservas inqualificáveis como as do ministro das Finanças dos Países Baixos, que não se coibiu em ultrajar a Espanha. A mesma Europa descarnada que se levanta, mercê dos ressentimentos nacionais que medram como resposta à incontinência verbal do ministro holandês, desde um primeiro-ministro que se propõe a pôr em sentido um ministro das Finanças de outro país (quando se julgava que os primeiros-ministros só dialogam com os seus pares), aos muitos que se puseram da mesma igualha do ministro holandês ao insultarem os Países Baixos como reação ao seu dislate.

O código genético da união que existe na Europa é a paz como antídoto das guerras, das guerras que a assolaram na primeira metade do século XX e das guerras que se queriam banidas no tempo por vir. Que ninguém esqueça isto. E que não seja esquecido que as guerras por travar não são apenas as que têm o odor fétido do sangue derramado por corpos trespassados por armas. Há guerras que travamos, como espécie, contra os ataques que nos põem vulneráveis, à mercê do abismo da morte; guerras sem armas, talvez piores por se combaterem no invisível. A Europa devia cimentar-se agora que esta guerra surda ameaça levar um número assustador de vidas, ameaça desmembrar a economia e ameaça mudar, para pior, os modos de vida a que nos habituámos. Antes que seja tarde para salvar a Europa e nem os países europeus, mergulhados no autismo, se consigam salvar a si mesmos – ou de si mesmos.

Post Scriptum: neste artigo de opinião faço marcha atrás no que defendi (em 2004) na tese de doutoramento, quando concluí que a zona euro não precisava de federalismo orçamental. Não é só o pensamento que muda, sem dar razão à profecia auto realizável do jornalista espanhol Pedro Vallin, ao sentenciar que esta crise converteu os neoliberais em keynesianos como a morte converte os ateus em crentes. As circunstâncias que mudam (e mudam profundamente) são o húmus do pensamento que se renova.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico