Até onde pode ir o clã Bolsonaro?
Três filhotes Bolsonaro, que estimulam a loucura do pai, são mais perigosos do que parecem. Para quem não conhece a realidade brasileira, vale a pena traçar um breve retrato dos três príncipes shakespeareanos desejosos de poder, provenientes de uma cultura carioca de burguesia da Barra da Tijuca, associada às milícias, aos comandos do jogo do bicho e aos militares aposentados. Os príncipes são chamados pelo pai “zero 1, zero 2 e zero 3”.
A partir do pronunciamento à nação de Presidente Jair Bolsonaro sobre a insignificância do coronavírus, o Brasil começou a viver num Estado político inédito, sem parâmetro constitucional.
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A partir do pronunciamento à nação de Presidente Jair Bolsonaro sobre a insignificância do coronavírus, o Brasil começou a viver num Estado político inédito, sem parâmetro constitucional.
O país em peso desmentiu Bolsonaro ou passou a ignorá-lo: cúpulas do Exército, vice-presidente, Congresso, tribunais, governadores e prefeitos decidiram não acatar as decisões do chefe de Estado.
É uma situação política muito peculiar. Bolsonaro está agora totalmente isolado.
Um dos exemplos que vale a pena citar é o do governador de Goiás, Ronaldo Caiado, de extrema-direita, aliado de primeira hora de Bolsonaro, mentor da bancada do gado, porém médico, e que declarou: “Eu não falo mais com esse homem.”
Paulo Guedes, ministro das Finanças, figura central do Governo, quase desapareceu. Está em parte incerta. A sua proposta bolsonariana de apoiar os trabalhadores informais em quarentena com 200 reais foi corrigida pelo Congresso, atingindo um valor de 600 reais ou 1200 por família. Guedes não mais falou.
O ministro da Saúde faltou explicitamente à reunião urgente da OMS, que reuniu ministros da Saúde de 50 países.
Apesar de ter faltado a uma reunião urgente da OMS, o ministro da Saúde já faz explicitamente frente a Bolsonaro: “Estaremos prontos para camiões transportando corpos?”, pergunta ao Presidente, enquanto este posta imagens passeando por Brasília, infringindo todas as regras sanitárias e provocando o país.
Quem acorreu ao Palácio do Planalto e formou um gabinete de emergência para prestar apoio ao comandante do país na semana passada foram os três filhos do Presidente – qual dinastia de príncipes herdeiros.
A imprensa brasileira refere a instalação do “Gabinete do Ódio” no Palácio do Planalto, cujo principal mentor é Carlos Bolsonaro. Este abandonou o seu trabalho como vereador no Rio de Janeiro e, sem qualquer nomeação oficial, foi para Brasília criar um bunker digital e preparar vídeos com o Presidente.
Este gabinete sem estatuto legal parece substituir o Conselho da República, previsto na Constituição e que Bolsonaro recusa convocar. Como é natural, o gabinete familiar deixa perdidos assessores e ministros, mas serve para criar notícias e tomar decisões que poucos cumprem.
“O Brasil não pode parar” foi o slogan do movimento lançado pelo clã Bolsonaro, contrariando as indicações da OMS, ou mesmo do Papa Francisco, e que incita os brasileiros a voltar para os seus postos de trabalho e convida as escolas a abrir durante epidemia. Infelizmente, esse slogan ecoa nas classes mais pobres, que não sabem como vão sobrevier.
Uma das fotos que circula nas redes mostra como os três filhos filmam o pai num dos pronunciamentos à nação. Mas também bombardeiam os apoiantes de extrema-direita com estímulos, procurando que nem todos se afastem do Presidente. Tentam reverter a onda e criam grupos de seguidores no Twitter como #bolsonarotemrazão, para enfrentar outros grupos como #bolsonaroenlouqueceu.
Felizmente, as ruas estão desertas e a passeata de carros convocada por Bolsonaro para protestar contra o confinamento, além de se desmentir a si própria (janelas hermeticamente fechadas), foi um perfeito flop.
Mais grave que isso, os decretos do Presidente ordenando o reinicio do trabalho foram revogados pela Justiça e os seus tweets contrariando as regras de saúde estão sendo apagados da rede por ordem legal.
Mas três filhotes Bolsonaro, que estimulam a loucura do pai, são mais perigosos do que parecem.
Para quem não conhece a realidade brasileira, vale a pena traçar um breve retrato dos três príncipes shakespeareanos desejosos de poder, provenientes de uma cultura carioca de burguesia da Barra da Tijuca, associada às milícias, aos comandos do jogo do bicho (uma atividade informal que gera milhões) e aos militares aposentados. Os príncipes são chamados pelo pai “zero 1, zero 2 e zero 3”.
Eduardo, 35 anos, “zero 3” na terminologia paterna, e apelidado “bananinha” pelo general Mourão, é o mais novo. Entrou no congresso em 2014, eleito pelo Estado de São Paulo. Nas eleições de 2018 foi o deputado federal mais votado da história do Brasil, tornando-se o líder da bancada do Governo. Tentou ser nomeado embaixador em Washington pelo pai, mas não reuniu consenso no Senado.
Eduardo faz gala no porte de arma e apresenta-se como “polícia federal 24/24”. As suas posições políticas são claras: pede comemorações nacionais para celebrar o golpe militar de 1964, defendeu a liberalização do porte de arma, opõe-se ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, opõe-se à política de quotas que abriu as portas do ensino superior à população negra, fez projetos de lei que pretendiam criminalizar o comunismo no país, defende abertamente o agronegócio contra o movimento dos sem terra e contra as demarcações indígenas.
Eduardo já teve graves problemas com o Congresso, sendo alvo de inquéritos da Comissão de Ética. Motivou pedidos oficiais de desculpas à China pelas suas declarações de ódio no contexto da covid-19. Mas continua a fazê-las. Em certa ocasião disse que “um novo Ai5” (lei que amordaçou a imprensa durante a ditadura) poderia ser a solução para o jornalismo brasileiro. Pouco depois, ficou provado que o seu gabinete no Congresso e, em particular, o computador do seu assessor pessoal era um motor de fake news contra adversários. A isso respondeu com desenvoltura: “Se for verdade, tenho de aumentar o salário do meu assessor.”
Carlos Bolsonaro, 36 anos, o “zero 2”, é apelidado pela imprensa de “pit bull". Foi o artilheiro da campanha eleitoral de seu pai, que sempre o quis como ministro ou conselheiro. Mas de inicio Carlos tinha preferido ficar na retaguarda. Agora já participou na redação do pronunciamento que dividiu o Brasil e, logo de seguida, esteve presente em videoconferências com governadores.
O seu rol de questões pendentes na Justiça é variado.
Por um lado, é acusado da criação de fake news, do financiamento de motores e robôs que as difundem, da utilização de bases de dados de terceiros (quando sete entre dez eleitores se informam via WhatsApp), ou seja, de práticas consideradas criminosas pela justiça no âmbito da campanha eleitoral que dirigia. Os processos a respeito das eleições ainda estão em curso.
A respeito deste tipo de guerra, o governador de São Paulo, João Dória, acaba de apresentar uma queixa policial. Dória, que foi apoiante fervoroso de Jair Bolsonaro, tornou-se agora o seu principal adversário e alvo. Não é por acaso que pediu proteção policial e convocou uma conferência de imprensa para contar que esta semana recebeu milhares de whatsapps de insultos, telefonemas de ódio e até ameaças de morte.
Voltando aos irmãos Bolsonaro, Carlos e o seu irmão Flávio também são investigados por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa, em um suposto esquema de “rachadinhas” – no qual funcionários dos seus gabinetes devolveriam parte do salário.
As situações mais graves prendem-se com o atual senador Flávio Bolsonaro, 38 anos, filho “zero 1”, quando este era ainda deputado estadual no Rio de Janeiro. O funcionamento das “rachadinhas” envolve alguns milicianos, nomeadamente Fabrício Queiroz e Adriano Nóbrega.
É difícil explicar em Portugal o que são “milicianos” no Brasil. São membros de organizações informais (ex-militares, ex-polícias) que gerem interesses financeiros e de poder com ameaças, crimes e mortes. Lembro-me sempre da chacina da Candelária, em 1993, quando um grupo de milicianos saiu de dois carros e disparou sem olhar sobre dezenas de crianças e adolescentes sem abrigo que dormiam à porta da igreja da Candelária. Mataram oito e feriram muitas. O objetivo era diminuir a criminalidade.
O miliciano Queiroz, ex-motorista e ex-segurança de Flávio Bolsonaro, seu amigo e homem de confiança, terá movimentado através das suas contas pessoais, no ano de 2018, 1,2 milhões de reais, quantia incompatível com os seus rendimentos. Além de receber nessas contas depósitos regulares de funcionários fantasma do gabinete de Flávio, fazia inexplicáveis pagamentos por cheque. Por exemplo, 40 mil reais para a atual mulher de Jair Bolsonaro.
Quanto ao miliciano Adriano Nóbrega, ex-Polícia Militar, suspeito de liderar o grupo denominado “Escritório do Crime”, foi homenageado por Flávio Bolsonaro quando este ainda era deputado estadual e esteve muito próximo do seu gabinete.
Desde o início de 2008 até novembro de 2018, Flávio Bolsonaro contratava a esposa do miliciano Adriano Nóbrega e, a partir de abril 2016, também empregou a sua mãe. Antes de ser expulso da PM, Adriano tinha sido preso e solto por três crimes, entre os quais um assassinato e uma tentativa de assassinato, mas acabou absolvido por falta de provas. Segundo testemunhas, Flávio Bolsonaro visitou-o várias vezes na prisão.
Adriano teria sido uma peça chave para entender o esquema das “rachadinhas” e outras questões mais graves. Mas Adriano se encontrava foragido desde o início de 2019, aparentemente para não depôr na investigação sobre Flávio Bolsonaro.
Adriano foi assassinado a 9 de fevereiro de 2020 por polícias e militares numa operação de “captura”. Segundo a perícia, o número de disparos, a sua localização e a distância do alvo provam precisamente o contrário: terá sido um homicídio. Curiosamente, Adriano tinha andado de esconderijo em esconderijo e encontrava-se apenas há um dia refugiado numa propriedade de apoiantes de Bolsonaro.
Adriano poderia ser determinante para esclarecer o assunto mais grave ao qual podem estar ligados os irmãos Flávio e Carlos: o assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.
É facto que Ronnie Lessa, um dos milicianos acusados de matar Marielle, hoje preso, morava no mesmo condomínio que o Presidente da República, onde também reside Carlos Bolsonaro.
A família Bolsonaro viu-se diretamente envolvida na investigação sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco quando um dos porteiros do condomínio afirmou que um dos acusados se dirigiu à casa do Presidente horas antes do homicídio. A Polícia Federal foi designada para ouvir o porteiro, que trocou o dito por não dito. E Carlos Bolsonaro fez tudo para intervir nessa situação, ficando ainda ligado à investigação sobre o assassinato.
Como o leitor pode imaginar, é bastante difícil fazer um retrato breve desta família com ex-militares expulsos do Exército, ligada a milicianos, com várias personagens complexas, sedutoras e assustadoras. Quem os vê num concurso de grande audiência com Sílvio Santos (2019) pode pensar que são anjos. Anjos muito ignorantes em matéria política, mas inofensivos. A família Bolsonaro garante que todas as acusações do Ministério Público são perseguições e procura travá-las com recursos e intervenções presidenciais na justiça.
Mas para ter uma ideia mais ampla das contradições desta família, vale a pena lembrar que no discurso da vitória eleitoral Jair Bolsonaro prometeu varrer as “ideologias” do Brasil, precisamente ao lado de um bispo evangélico chamado para celebrar uma missa.
Agora, em plena tormenta, confirmou-se que Flávio e Carlos Bolsonaro, defensores do porte de arma e do slogan “bandido bom é bandido morto”, acabam de ingressar no partido “Republicanos”, do prefeito Crivella, sobrinho do bispo Edir Macedo, e principal representante dos interesses da IURD no Congresso.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico