Covid-19, tocata e fuga
Haverá sempre queixas e a culpa será sempre do Estado. Tudo isto já se imagina, mas em nada poderá afetar a marcha do trabalho.
Quando a desgraça se abatia, o primeiro recurso espiritual dos pagãos era encontrar o bode expiatório e liquidá-lo. Hoje como então, a solução fácil é culpar os outros: a falta de dispositivos de proteção, a demora nos testes, o número de ventiladores e de camas para cuidados intensivos, lares mal desenhados, sobrelotados de utilizadores e infradotados de pessoal qualificado. De nada vale as lacunas serem preenchidas, os imprevistos colmatados, os equipamentos e dispositivos de proteção estarem a chegar, os hospitais garantirem suporte de vida, o pessoal se multiplicar em esforços e sacrifícios. Haverá sempre queixas e a culpa será sempre do Estado.
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Quando a desgraça se abatia, o primeiro recurso espiritual dos pagãos era encontrar o bode expiatório e liquidá-lo. Hoje como então, a solução fácil é culpar os outros: a falta de dispositivos de proteção, a demora nos testes, o número de ventiladores e de camas para cuidados intensivos, lares mal desenhados, sobrelotados de utilizadores e infradotados de pessoal qualificado. De nada vale as lacunas serem preenchidas, os imprevistos colmatados, os equipamentos e dispositivos de proteção estarem a chegar, os hospitais garantirem suporte de vida, o pessoal se multiplicar em esforços e sacrifícios. Haverá sempre queixas e a culpa será sempre do Estado.
A agressividade mal disfarçada das perguntas na ronda diária da DGS é o melhor indicador deste clima. Surgem soluções salvíficas: pavilhões municipais para testes PCR rápidos, já que o SNS se não desembrulha; queixas contra o Estado central e seus órgãos desconcentrados; estranheza pela demora de soluções para riscos que poderiam ter sido solucionados a nível local se seguissem instruções dadas em tempo útil; queixas, queixas, queixas!
Também surgem soluções práticas e inteligentes, de iniciativa local, como a utilização de hotéis vazios para separar idosos institucionalizados contaminados, dos que ainda possam não o estar. Todavia, o comportamento geral pouco se afasta do de há 120 anos, até que a evidência se imponha. Ricardo Jorge, já não podendo ser expulso da sua cidade, mantém o fantasma a pairar.
Clama-se que os números são falsos, incompletos, manipulados, atrasados. As conferências de imprensa longas. Em breve se dirá que os políticos se servem da crise em proveito da sua reputação. Já alguns duvidam dos números, a primeira das insídias. Por muito que seja explicado como é colhida, reunida, tratada, transmitida e publicada a informação, haverá sempre teorias de conspiração, descrença idiota, invejas do protagonismo alheio, ignorância arrogante, ou simplesmente malformação congénita. Semearão pedras, escolhos, cavarão alçapões, lançarão o veneno da descrença. Tudo isto já se imagina, mas em nada poderá afetar a marcha do trabalho.
Há muito que fazer. Há valores adormecidos que podem ser despertados, solidariedades cultivadas em grupo para servir terceiros que não reconhecíamos no nosso tempo, desprendimentos e desapegos também libertadores. O mundo será um pouco diferente do que é hoje, não muito, talvez mais sensível aos valores ambientais, aos animais, à natureza, aos marginais da nossa margem. Talvez nos valores de cidadania possa haver diferenças. E podem ser para melhor.
Uma palavra final sobre as medidas económicas e sociais. Foram castigadas por terem demorado, por terem feito o Ministério do Trabalho perder visibilidade, por não romperem com a burocracia habitual. Críticas injustas por infundamentadas: a demora, sobretudo no inovador lay-off, deveu-se ao processo de audição dos parceiros que permitiu aperfeiçoá-las. A informação permanente ao Presidente da República permitiu que ele as promulgasse “na hora”. A ministra Ana Mendes Godinho e colaboradores, que se teriam “apagado” para comentadores mal-informados, foram as formiguinhas que permitiram a uma máquina pesada elaborar em tempo recorde legislação complexa. Outros dirão que as medidas, sobretudo o lay-off, são lassas e se prestam a fraude. Onde notam defeito, eu vejo qualidade, desembaraço e eficácia. Aplicar primeiro, controlar depois, em vez de parar à entrada para controlar, demorando tempo infindo.
Finalmente, uma enorme preocupação: todas as medidas assentam na preservação do emprego e a verdade é que se dirigem a empresas que são quem faculta emprego. Mas há direitos a garantir: se o pretexto da crise para despedir tem que ser reprimido severamente, os sindicatos devem perceber que o direito a cada um gozar férias quando deseja não pode obstar a que acordos livres entre empresas e trabalhadores possam permitir a otimização acordada do melhor uso temporal dos recursos humanos neste momento de crise. Sabemos de uma pequena multidão de violações da lei e bem receamos que a função reguladora do Estado, incapacitada e de braço curto, deixe para trás os mais fracos. Não pode ser. Aí estará o Ministério do Trabalho posto à prova.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico