Quando o vírus bate na economia quem se lixa não pode ser a cultura
Agora, mais que nunca, importa que o Poder Local assuma o compromisso com a Cultura, mesmo que tal não contribua para a aritmética eleitoral do próximo ano. A não ser assim, quem se lixa é a cultura; e nem todos os agentes culturais sobreviverão aos estragos que a onda provocar.
Se há situação de crise que afeta, por inteiro, toda uma economia, essa é a situação que vivemos presentemente. No entanto, nem todos os setores sofrem o mesmo impacto, pelo mesmo período, nem necessariamente com iguais consequências.
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Se há situação de crise que afeta, por inteiro, toda uma economia, essa é a situação que vivemos presentemente. No entanto, nem todos os setores sofrem o mesmo impacto, pelo mesmo período, nem necessariamente com iguais consequências.
O sector da Cultura, em especial todas as atividades relacionadas com espetáculos e artes performativas, foi o primeiro (ainda em final de fevereiro, aquando das primeiras recomendações da DGS) a começar a sofrer as consequências da crise. Com o anúncio dos primeiros cancelamentos, os agentes culturais começaram a sentir na pele as interdições, muito antes do decretamento do estado de emergência, e é bem possível que este venha a ser dos últimos setores a retomar em pleno a sua atividade.
Os primeiros casos confirmados de infetados pelo novo coronavírus, em Portugal, surgiram no exato momento que que toda esta indústria – já de si relativamente descapitalizada e com enormes dificuldades de financiamento – se preparava para a retoma generalizada de atividade, após o longo período sazonal de decréscimo (quando não ausência) de receitas, que tipicamente decorre entre o final do inverno e o inicio da primavera. Como a formiga, o setor dos espetáculos ao vivo, no essencial, trabalha na primavera e verão, para sobreviver no inverno.
Autores, músicos, bailarinos, atores, encenadores, coreógrafos, promotores de eventos, agentes, produtores e dezenas de milhares de profissionais de espetáculos (que o público não vê, mas que são essenciais para que o espetáculo exista), na sua esmagadora maioria profissionais “independentes” na forma, mas materialmente totalmente dependentes da atividade artística, viram abater-se sobre eles, na pior altura possível, uma crise de proporções diluvianas, sem fim à vista.
Este frágil e complexo ecossistema de interdependência – gerador de enormes alteridades sociais e que sempre foi capaz de ser solidário com as causas de outros ou de todos – não tem quaisquer condições de sobreviver se ficar entregue à sua sorte.
Todos estas empresas, empresários e profissionais de espetáculo assistiram ao anúncio de medidas do Governo aplicáveis a outros sectores de atividade, aguardando, com natural ansiedade, o anúncio – mas sobretudo a efetiva publicação e entrada em vigor – de medidas especificas para este sector, dia-a-dia mais desesperado.
A já anunciada abertura da linha de apoio de emergência, no valor de um milhão de euros, está muito longe de poder satisfazer as necessidades imediatas destes profissionais.
Entretanto, na passada quinta-feira foi publicado o DL 10-I/2020, que regula alguns aspetos contratuais relacionados com os espetáculos que não poderão ocorrer na data agendada, em virtude das interdições de funcionamento.
Poderia e devia o Governo ter ido mais longe, mesmo neste quadro limitado dos normativos aplicáveis ao reagendamento dos espetáculos. Não pondo em causa a manifesta (boa) vontade e empenho políticos desde o início manifestados pela ministra Graça Fonseca, talvez tenha faltado ao legislador “engenho e arte” e ambição política para ir mais além e regular com maior amplitude e força vinculativa as relações entre os promotores (em particular os promotores públicos) e os profissionais de espetáculos, a começar pelos artistas e seus agentes.
Apesar da dificuldade de o fazer, no respeito pelos princípios constitucionais (não suspensos) da autonomia do Poder Local, não era impossível acolher com maior amplitude os anseios de um sector em desespero.
Porém, certo é que o diploma tem o mérito de, a par com a previsão de um principio geral de reagendamento dos espetáculos entretanto adiados, permitir a todos os promotores públicos efetuar pagamentos antecipados (que podem, aliás, ser parciais), pagamentos esses que serão, a um tempo, não só o único garante efetivo da obrigação de reagendamento, como também uma preciosa (ainda que insuficiente) injeção de liquidez.
Só a efetiva utilização destes normativos poderá salvar empresas e contribuir para a subsistência de profissionais do setor que – por serem tipicamente trabalhadores independentes sujeitos a uma contração sazonal das receitas – pouco ou nada beneficiarão das medidas gerais já adotadas, numa área de atividade em que a precaridade é a regra e a capacidade de aforro e liquidez financeiras absolutas exceções.
Enquanto os agentes culturais se debatem para perceber se poderão ou não beneficiar das comparativamente robustas linhas de crédito anunciadas e já parcialmente reguladas para outros setores, é essencial que os promotores públicos, e em particular as autarquias locais, sejam, nesta hora de aperto, fieis ao seu compromisso histórico com a promoção cultural descentralizada e de acesso generalizado.
Para tanto, bastará que se socorram dos meios legais que o Governo colocou à sua disposição, e sejam capazes de dar o exemplo, pagando, aquando do adiamento, ao menos parte dos valores acordados com produtores de espetáculos, agentes, artistas e outros profissionais.
Mais do que um apoio de emergência e socorro, a disponibilização parcial destas verbas – que se encontram obviamente já orçamentadas e comprometidas – traduz-se, afinal, no cumprimento de um mínimo ético perante todos aqueles que ficam legalmente obrigados a aceitar o reagendamento para uma nova data, que poderá só vir a ocorrer um ano após a data inicialmente agendada. Será, no mínimo, indigno impor tal obrigação de realizar a prestação artística em data futura (e, por agora, incerta) sem, ao menos, prestar um sinal e princípio de pagamento.
Este tem sido o apelo de centenas de empresas de produção, promoção e agenciamento, milhares de artistas e muitos mais profissionais do espetáculo, que, sem terem acesso ao palco, são essenciais para fazer chegar a cultura ao seu público. É justo dizê-lo que este tem sido também o apelo constante da ministra Graça Fonseca.
Mas, para que tal aconteça, será necessário que os autarcas deste país resistam à tentação demagógica de fazer “tábua-rasa” do decreto-lei agora publicado e dos compromissos anteriormente assumidos, e resistam à tentação de anunciar a transferência total das verbas para o combate à crise pandémica em que todos nos encontramos.
Agora, mais que nunca, importa assumir o compromisso com a Cultura, mesmo que tal não contribua para a aritmética eleitoral do próximo ano.
A não ser assim, quem se lixa é a cultura; e nem todos os agentes culturais sobreviverão aos estragos que a onda provocar.
Este artigo é escrito em nome pessoal e não traduz a posição de organizações do sector cultural que o autor integra e nas quais assume responsabilidades
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico