Contra a virulência, inteligência
A única esperança de retornarmos a uma vida normal é usarmos eficazmente a inteligência humana contra a virulência deste parasita. Para isso, precisamos de dados, que possamos tornar em informação e em conhecimento para derrotar este inimigo invisível.
A pandemia causada pelo SARS-CoV-2, que se espalhou pelo mundo inteiro com uma velocidade e intensidade inesperadas, apanhou o mundo inteiro de surpresa. O que se esperava que fosse apenas mais uma epidemia, controlável com medidas mais ou menos radicais, como as que foram adoptadas na China, transformou-se numa pandemia sem precedentes nos últimos 100 anos, apenas comparável à gripe espanhola que entre 1918 e 1920 causou dezenas de milhões de mortos.
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A pandemia causada pelo SARS-CoV-2, que se espalhou pelo mundo inteiro com uma velocidade e intensidade inesperadas, apanhou o mundo inteiro de surpresa. O que se esperava que fosse apenas mais uma epidemia, controlável com medidas mais ou menos radicais, como as que foram adoptadas na China, transformou-se numa pandemia sem precedentes nos últimos 100 anos, apenas comparável à gripe espanhola que entre 1918 e 1920 causou dezenas de milhões de mortos.
A era do jacto que se estabeleceu progressivamente a partir dos anos 60 contribuiu, de forma decisiva, para a seriedade da pandemia e para o rápido contágio de centenas de milhar de pessoas em todo o mundo, trazendo consigo uma nova forma de transporte para os vírus que, em poucas horas, se podem propagar de um continente para outro. Esta dispersão pelo mundo, a evolução exponencial que é consequência do facto de cada infectado contagiar em média entre duas e três pessoas e a dificuldade de detecção do vírus nas primeiras semanas da infecção criaram as condições para que a pandemia atingisse a dimensão actual.
A capacidade que o vírus tem para se transmitir de hospedeiro para hospedeiro, aliada aos efeitos nefastos que tem na saúde de uma fracção significativa da população, obrigou-nos a adoptar o único mecanismo que, nesta fase, pode evitar a sua proliferação desenfreada e o colapso dos sistemas de saúde. A política de isolamento social que foi adoptada, progressivamente, pela maioria dos Estados, é a única que nesta fase dá garantias mínimas de que o impacto do vírus venha a ser gerível. Portugal adoptou medidas de contenção do vírus relativamente cedo no processo de evolução da epidemia, beneficiando da experiência de outros países e, principalmente, da visão de diversos especialistas que fizeram recomendações fortes e urgentes nesse sentido. Aqui, é de realçar o papel do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas e do seu presidente, Prof. Fausto Pinto, director da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, e das diversas universidades que foram pioneiras na adopção de medidas contra a propagação do vírus. Esperemos que estas medidas façam com que a epidemia em Portugal venha a ter uma evolução menos dramática do que teve em Itália e Espanha.
Porém, a situação actual de reclusão domiciliária de uma fracção significativa da população não se pode prolongar indefinidamente, nem sequer até que exista vacina ou cura para o vírus. Mesmo na actual situação existe alguma propagação do vírus, uma vez que é impossível reduzir a zero o contacto entre infectados e não infectados. Acresce que mesmo depois do pico da epidemia continuarão a permanecer na população, em Portugal e no estrangeiro, casos suficientes para causar um recrudescimento da doença, mais tarde ou mais cedo. É por isso que é fundamental planear, desde já, a utilização eficaz de inteligência humana como mecanismo de combate à virulência exibida por este parasita. Temos conhecimento que, se devidamente usado, nos permitirá combater a propagação da covid-19. De facto, poucas semanas após o seu aparecimento, ficámos a conhecer a estrutura do vírus, o seu código genético e a forma como invade os corpos dos hospedeiros, multiplicando-se e reproduzindo-se. Esse conhecimento tem sido precioso no controlo da epidemia e já permitiu à ciência portuguesa contribuir de forma decisiva para o combate à epidemia, tendo uma equipa do IMM, liderada pela Profª Maria Mota, desenvolvido em poucas semanas um teste de qualidade internacional para a presença do vírus.
Porém, temos a obrigação de usar todos os mecanismos que estão ao nosso dispor. Devemos criar um sistema nacional, baseado em aplicações móveis, que permita às autoridades seguir e identificar os casos de covid-19, com a eficácia e precisão necessárias para identificar e parar as cadeias de transmissão. Os dados georreferenciados gerados por uma aplicação desenvolvida para o efeito, que fosse amplamente adoptada, permitiriam, através do uso de técnicas de inteligência artificial, identificar em poucos minutos as pessoas que partilharam espaços com os infectados, mesmo que o contacto tenha ocorrido antes de a infecção ser diagnosticada. Diversos países, incluindo Hong Kong, Coreia do Sul, Taiwan, China, Israel e Alemanha, usaram e continuam a usar este tipo de informação para controlar a propagação da epidemia e para estudar a disseminação do vírus. Este tipo de tecnologia levanta, naturalmente, questões relevantes de privacidade que, porém, podem ser devidamente endereçadas limitando as entidades e as pessoas que têm acesso aos dados. Em todo o caso, este tipo de informação, embora de qualidade inferior, existe já, estando na posse das operadoras de telecomunicações. Numa situação onde é necessário escolher entre a vida de centenas de pessoas e a privacidade, temos de ter a capacidade de fazer a opção certa, tomando as devidas precauções para que a informação não seja usada indevidamente.
Por outro lado, devemos utilizar os dados clínicos e epidemiológicos dos casos conhecidos para fazer avançar o nosso conhecimento sobre o vírus e a doença. À medida que a epidemia se desenvolve, acumula-se informação importantíssima sobre a evolução de cada paciente. Sabemos já que a letalidade do vírus está fortemente relacionada com a idade do paciente. Se cruzarmos os valores oficiais de mortes registados em Portugal por faixa etária com os valores de letalidade publicados por investigadores do Imperial College (admitindo que serão semelhantes em Portugal), verificamos que existe bastante alinhamento entre os dois. O gráfico abaixo ilustra esta relação, reproduzindo, para a população portuguesa, um resultado publicado há semanas pelo Prof. David Spiegelhalter, um conhecido matemático britânico. Ignorando o desvio na faixa etária entre os 0 e os 9 anos, que se deve essencialmente à mortalidade infantil, a probabilidade de se morrer ao contrair covid-19 é da mesma ordem de grandeza da probabilidade de morrer durante um ano, para uma dada faixa etária. Ou seja, ser contagiado pelo vírus concentra, num período de poucas semanas, o mesmo risco de morte inerente a um ano de vida.
Mas esta relação esconde muitas coisas. O vírus não tem acesso aos registos de nascimento, pelo que não sabe a idade da pessoa. Esta variação do risco com a faixa etária deve-se, necessariamente, a outros factores, correlacionados com a idade. Estes factores podem ser a tensão arterial, a utilização de determinados medicamentos ou outras características que desconhecemos. Estamos a combater uma guerra de olhos vendados. O acesso aberto aos dados clínicos, genéticos e comportamentais dos pacientes, que tem sido exigido pela comunidade científica, permitirá identificar de forma mais precisa os factores de risco e abrir a porta a tratamentos e procedimentos que limitem a letalidade do vírus.
A única esperança de retornarmos a uma vida normal é usarmos eficazmente a inteligência humana contra a virulência deste parasita. Para isso, precisamos de dados, que possamos tornar em informação e em conhecimento para derrotar este inimigo invisível.