O vírus do humor e o altar das notícias
Estou convencido que os próprios serviços noticiosos das principais cadeias de televisão de todo o mundo não vão ficar intocados por esta crise que a todos vai abalar e cujos efeitos são múltiplos. Numa democracia adulta, os cidadãos procurarão cada vez mais ser esclarecidos através de informação com menos espetáculo, mas com mais fiabilidade.
“Os noticiários não são construídos apenas de imagens que representam o real.”
(Gisele Risson, na dissertação que apresentou para obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo, na Universidade de Passo Fundo, Brasil, 2014)
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“Os noticiários não são construídos apenas de imagens que representam o real.”
(Gisele Risson, na dissertação que apresentou para obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo, na Universidade de Passo Fundo, Brasil, 2014)
“Nós ficamos tão envolvidos e fascinados pelas tramas da televisão que nós achamos um pouco mais conveniente ficar em casa do que vir para a Igreja. Foi uma coisa inconsciente. Nós não pretendíamos fazer isto.”
(Martin Luther King Jr., pastor protestante batista e ativista político, 28 de fevereiro de 1954, em “The Papers of Martin Luther King Jr.”)
A quarentena imposta pelas autoridades de saúde para minimizar a disseminação da doença que se manifestou pela primeira vez na cidade chinesa de Wuhan em dezembro de 2019 colocou um sinal de STOP no nosso caminho. Pelo menos fomos obrigados a parar neste cruzamento ou entroncamento das nossas vidas. Agora estamos retidos: em casa, no trabalho, no quartel… Parece que estamos todos em prisão domiciliária. Agora só falta que nos venham entregar uma pulseira eletrónica que viabilize o controle minucioso da nossa exata localização. Sugiro que, na falta de milhões de pulseiras, estas possam ser fabricadas rapidamente pelas inúmeras impressoras 3D que afinal existem distribuídas por variadíssimos sítios em Portugal, incluindo algumas bibliotecas municipais (como, por exemplo, as de Alcobaça, Fundão ou Pombal).
Estamos retidos em sítios onde habitualmente andamos numa lufa-lufa, mas que agora são sítios para permanecer. Até que a pandemia nos liberte. E, provavelmente, muitos de nós permanecemos longos períodos de tempo frente às televisões… ansiosos por notícias. E é aqui que pode e deve entrar um outro vírus: o vírus do humor. Ao contrário do SARS-CoV-2, o vírus do humor só tem que ser benéfico. Como disse Jorge Mario Bergoglio, numa cerimónia religiosa pelo fim da pandemia de covid-19, é preciso parar, pensar e mudar. Contribuindo para esse desígnio, permito-me sugerir que entre outras estratégias se inclua a disseminação do vírus do humor. Este vírus também é muito difícil de detetar (neste caso, nem com um microscópio de altíssima resolução)… No entanto, o seu efeito sobre os humanos traz benefícios reais, pois pode contribuir quer para a melhoria do estado de saúde mental de cada um, quer para o aprofundamento da democracia participada e da análise do estado das instituições. Por exemplo, usemos uma qualquer estirpe do vírus do humor e apliquemo-la bem, na tranquilidade da nossa quarentena, sobre a realidade atual do nosso jornalismo televisivo.
Longe vão os tempos dos primeiros noticiários televisivos. Parece que a primeira estação televisiva na Europa foi a da BBC em 1932, e que o primeiro programa político de televisão foi realizado na CBS, na cidade de Nova Iorque, em 11 de outubro de 1932. Nas origens, o jornalismo de televisão copiou o formato da rádio, mas depois a evolução dos noticiários televisivos foi influenciada por novas tecnologias e, sobretudo, por novas formas de encarar a comunicação televisiva como fonte de poder na sociedade, mercê do seu grande impacto e influência.
Caro leitor, já reparou como se processam os telejornais das principais cadeias de televisão? Não é necessário sintonizar a CNN, a BBC, a Sky News…; basta assistir aos telejornais das estações de televisão portuguesa para reparar que o cenário onde surge e se movimenta normalmente o pivot tem muitas semelhanças com o altar de uma celebração religiosa. Habitualmente, o pivot ocupa o lugar central de uma grande mesa, aparecendo assim como líder ou mentor espiritual, salvo seja, de um templo religioso ou local sagrado. Mais do que um púlpito, a enorme mesa transmite a imagem de que o pivot, mais do que um jornalista, é um pregador. Se o pivot for experiente, até pode parecer que tem poderes para consagrar o assunto ao culto dos deuses. Em suma, para além de serem jornalistas, os apresentadores dos principais telejornais são investidos de uma faceta de bons sacerdotes.
De facto, se observarmos bem, a mesa da maioria dos noticiários televisivos dos grandes canais costuma ser uma mesa enorme, com design exclusivo e geralmente sofisticado. O apresentador ou apresentadora está na posição central da mesa (em alguns casos até podemos ter dois: um apresentador e uma apresentadora). O cenário carrega consigo uma série de conceitos abstratos, mas que se pretendem fazer chegar aos telespectadores. E esta minha opinião não tem nada de novo. Já em 2005, Luís Carlos Lopes, da Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, escrevia: “Há tentativas de abolir a bancada, de torná-la mais alta, mais baixa, etc. Os estúdios variam, bem como a escolha da movelaria e da decoração. Entretanto, há sempre um lugar de onde os principais locutores dos telejornais falam. As bancadas continuam a existir, de modo imaginário, mesmo quando o jornal é falado de pé e os locutores se movimentam no cenário. Ele substitui as bancadas, tornando inócua a tentativa de aboli-la. As bancadas reais ou imaginárias separam os locutores da tele-audiência. Elas funcionam como uma espécie de altar profano de onde a ‘verdade’ é proferida para o consumo público. A importância da bancada é tão grande que quando alguém que não é locutor senta-se diante dela é porque foi objeto de deferência especial. O fato costuma ser lembrado e comentado principalmente nos telejornais da Rede Globo.” (em “A parole do telejornalismo brasileiro”, artigo apresentado no 2.º Colóquio Canadá-Brasil em Comunicações. ALCA: progresso social e diversidade cultural, Université du Québec à Montreal, 10 e 11 de outubro de 2005).
Estou convencido que os próprios serviços noticiosos das principais cadeias de televisão de todo o mundo não vão ficar intocados por esta crise que a todos vai abalar e cujos efeitos são múltiplos. Numa democracia adulta, os cidadãos procurarão cada vez mais ser esclarecidos através de informação com menos espetáculo, mas com mais fiabilidade. O papel dos serviços noticiosos das televisões terá de ser sobretudo fornecer boa informação, em detrimento de tentativas de abuso da sua posição dominante para formar opinião pública em vez de informar a opinião pública. Quando novos modelos se implementarem, haverá sempre quem resista e quem não os consiga acompanhar. No entanto, também no telejornalismo podemos esperar novidades. Julgo que, conforme é necessário, será para melhor.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico