Oportunidade única para vencer a crise climática
Se a covid-19 apareceu de rompante, já a crise climática é conhecida pelo menos desde os anos 80 e reúne um consenso científico e político possivelmente sem precedentes. Não há desculpas para a inacção – nem mesmo a covid-19.
Vivemos como que anestesiados pela actual tragédia provocada pela covid-19. Compreensivelmente, televisões e jornais dedicam-se a cobrir os mais ínfimos detalhes do que se passa. Da mesma forma que seguimos a Guerra do Iraque em directo, conhecemos a evolução do vírus em qualquer ponto do mundo e as medidas que governos e organizações internacionais têm lançado na tentativa de vencer esta guerra sui generis.
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Vivemos como que anestesiados pela actual tragédia provocada pela covid-19. Compreensivelmente, televisões e jornais dedicam-se a cobrir os mais ínfimos detalhes do que se passa. Da mesma forma que seguimos a Guerra do Iraque em directo, conhecemos a evolução do vírus em qualquer ponto do mundo e as medidas que governos e organizações internacionais têm lançado na tentativa de vencer esta guerra sui generis.
Permito-me, no entanto, chamar a atenção para o facto de existirem outras batalhas a travar, batalhas essas perante as quais nem agora podemos esmorecer. O facto de sermos temporariamente poupados a notícias sobre novos recordes de temperaturas, degelo polar ou extinção de biodiversidade não significa que não continuem o seu caminho – mas apenas que estamos, naturalmente, menos atentos.
É certo que a queda da actividade económica (aponta-se para uma quebra homóloga do PIB relativamente a 2019 na ordem dos 5-10%) acarreta uma espécie de moratória auto-imposta nas emissões de carbono ou exploração de recursos naturais. Mas também é verdade que, no momento em que escrevo, foram já prometidas à economia ajudas de pelo menos sete biliões de euros um pouco por todo o mundo, o equivalente a cerca de 5% do PIB mundial – tudo somado entre acréscimo de despesa pública, emissão de moeda, garantias de empréstimos e perdões fiscais. Esta reacção célere e peremptória é fulcral para evitar uma depressão socioeconómica, mas creio haver margem para melhorar tais medidas contracíclicas.
De facto, no desespero de recuperar actividade económica o mais rapidamente possível, corremos o risco de afrouxar legislação ambiental e, portanto, de enveredar por um rumo de desenvolvimento ainda mais insustentável do que o anterior à crise. Foi esta precisamente a mensagem da Polónia ao pedir que a Comissão Europeia isentasse o país do regime de comércio de licenças de emissão – que viu o preço do carbono cair 40% desde Julho de 2019. Não deixa de ser interessante, aliás, verificar que a fraqueza do mercado do carbono corrobora a existência de uma desaceleração económica anterior à covid-19. O mercado carbónico corre assim o risco de se tornar novamente uma inutilidade, à semelhança do que aconteceu entre 2011 e 2017. Será um teste à eficácia da reforma que sofreu há dois anos.
Mas, por muito que custe escrever isto, as crises são oportunidades para repensar decisões e realocar capital, usando-o de forma mais eficiente. Creio estarmos perante outro desses momentos históricos. A diferença é que, ao contrário de períodos anteriores de ‘destruição criativa’ que semearam as bases para sociedades mais prósperas, o actual poderá ser também fulcral para a própria sobrevivência da nossa civilização a longo prazo.
Neste momento crítico é preciso tirar partido dos enormes recursos mobilizados e exigir que os novos investimentos sejam compatíveis com um cenário de aquecimento global de 1,5°C e com o objectivo comunitário de atingir zero emissões líquidas de gases com efeito de estufa em 2050 (de notar que, ao contrário do que se possa pensar, um nível neutro de emissões líquidas não requer zero emissões propriamente ditas, o que seria impossível, mas apenas que quaisquer emissões seriam compensadas pelo sequestro de carbono). Simultaneamente, os governos poderiam usar esses recursos para acelerar decisivamente a construção e adopção de energias renováveis e de tecnologias limpas. Parece incompreensível, face à urgência climática que requer uma duplicação do investimento em energias limpas até 2030, que na Europa este tenha decrescido 7% entre 2018 e 2019. Reptos semelhantes têm sido lançados por diversas organizações internacionais, por exemplo pelo director executivo da Agência Internacional de Energia, Fatih Birol.
É crucial não baixar a guarda e compreender que a crise ambiental em que já nos encontramos será ainda mais gravosa do que a da covid-19 caso falhemos as metas climáticas. Enquanto que a covid-19 será previsivelmente balizada no tempo graças às medidas em curso de distanciamento social e, esperemos, à invenção de tratamentos e vacinas, a crise climática assemelhar‑se‑á mais a um fogo lento, duradoura e inescapável. E se a covid-19 apareceu de rompante, já a crise climática é conhecida pelo menos desde os anos 80 e reúne um consenso científico e político possivelmente sem precedentes. Não há desculpas para a inacção – nem mesmo a covid-19.