A nova aldeia de Potemkin: a China e os números da Covid-19
1. A expressão “aldeia de Potemkin” faz parte do vocabulário político contemporâneo. Na sua origem está um episódio da história russa do século XVIII. Em 1787, a imperatriz Catarina a Grande, ou Catarina II da Rússia, fez uma visita à Península da Crimeia, recém-conquistada pelos russos ao Império Otomano. Nela participaram, para além da própria imperatriz, a corte russa e diversos embaixadores estrangeiros convidados para o efeito.
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1. A expressão “aldeia de Potemkin” faz parte do vocabulário político contemporâneo. Na sua origem está um episódio da história russa do século XVIII. Em 1787, a imperatriz Catarina a Grande, ou Catarina II da Rússia, fez uma visita à Península da Crimeia, recém-conquistada pelos russos ao Império Otomano. Nela participaram, para além da própria imperatriz, a corte russa e diversos embaixadores estrangeiros convidados para o efeito.
Coube ao Primeiro-Ministro russo, o general Grigori Potemkin, organizar essa grandiosa visita de Estado aos novos territórios para mostrar os sucessos da sua administração. Para impressionar a imperatriz, este teria mandado construir várias aldeias falsas, que só existiam de fachada, as quais iam sendo colocadas no trajecto da visita.
Independentemente da veracidade histórica, ou de um exagero atribuível aos detractores de Grigori Potemkin, o episódio traduz, num contexto político, uma construção fictícia, física ou figurativa, destinada a ocultar uma situação indesejável, ou potencialmente prejudicial. É útil para colocarmos em perspectiva algumas situações em curso nos extraordinários tempos que vivemos.
2. Pelos dados tornados públicos nas últimas semanas, a pandemia da Covid-19 foi controlada na China e está aí em fase de inversão. Por sua vez, na Europa, em particular na Itália, está em grande expansão, parecendo mesmo descontrolada. Pelos dados divulgados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), datados de 25 de Março, a China tinha 101 novos casos confirmados e 3287 mortes no total. Quanto à Itália, os dados da OMS apontavam para 5249 novos casos e 6820 mortes no total.
Nesta altura, já terão superado as 10.000 mortes, enquanto na China os casos mortais parecem ter estabilizado no valor anterior, um pouco acima dos 3000. Tendo em conta que o vírus foi detectado pela primeira vez em finais de 2019 em seres humanos, na cidade de Wuhan da província chinesa de Hubei — uma enorme área urbana com mais de 11 milhões de habitantes, ou seja, com uma população superior à portuguesa —, estes números chineses são notáveis. Comparativamente com a Itália, a província de Hubei tem cerca de 58,5 milhões de habitantes, ou seja, aproximadamente o mesmo da Itália, que tem uma população total na ordem dos 60 milhões. Mas a facilidade com que o vírus se transmite por contacto social, as condições de higiene e habitação comuns (de baixa qualidade) e a imensa massa humana da China — onde há concentrações por km² muito superiores à da Europa — dão-lhe contornos particularmente difíceis para os chineses.
A província de Hubei tem sensivelmente a mesma população de Itália numa área de 185 mil km² — a Itália tem cerca de 300.00 km² — num território que é, grosso modo, o dobro do português, mas com seis vezes mais população. Tudo isto torna o sucesso chinês ainda mais extraordinário (até porque o problema não está confinado a Wuhan/Hubei), mesmo tendo em conta o facto de a população italiana ser das mais envelhecidas da Europa e do mundo.
3. Mas estes números que tanto têm impressionado os europeus, na aflitíssima Itália e fora dela, levantam várias interrogações sobre as quais vale a pena reflectir. Importa ter em mente que, como é normal nas organizações internacionais, os dados sobre infectados e mortes pela Covid-19 que a OMS publica têm por base as informações que lhe chegam dos diferentes Estados.
Por outras palavras, nem OMS, nem qualquer outra instituição como a Universidade Johns Hopkins ou outras (usuais fontes dos números que vemos na imprensa sobre a Covid-19), fazem recolha directa no terreno da informação que publicam, nem teria meios para o fazer mesmo que tivessem acesso a ela. As suas fontes são indirectas, apenas compilam informação que outros fornecem aglutinando-a num único local que a torna mais facilmente acessível a quem a procura.
Mas isto levanta um problema que não é novo para quem está habituado a lidar com estatísticas internacionais, seja sobre as vítimas da cvid-19, seja sobre indicadores de natureza económica, ou com qualquer outro tipo de indicadores: tais dados reflectem correctamente a realidade?
Fundamentalmente, há duas coisas que condicionam o rigor deste tipo de estatísticas. A primeira é de natureza técnica. Implica a existência de serviços de saúde com efectiva capacidade de identificar correctamente as vítimas da covid-19 (e não catalogá-las como vítimas de outras doenças com sintomas similares) e, sobretudo, identificar os casos de pessoas infectadas. Para isso são necessários diversos meios, desde logo testes de diagnóstico que, frequentemente, não existem. Esses serviços de saúde têm, também, de ser capazes de transmitir aos governos em tempo real — e de forma adequada — tal informação. Para além disso, os critérios usados para registar os casos têm de ser uniformes em todos os países do mundo, o que, na prática, muitas vezes não se verifica.
Em segundo lugar, há um problema político muito delicado. As estatísticas da covid-19 são extraordinariamente sensíveis do ponto de vista de impacto na opinião pública que já está (demasiado) alarmada. Levantam, por isso, uma questão crítica e particularmente incómoda: são os números divulgados pelo Governo chinês reais, ou estão a ser geridos politicamente, leia-se manipulados? A questão vale naturalmente também para os dados oficiais que outros países publicitam.
4. É impossível responder com total rigor a esta interrogação. Não há forma de confirmar imparcialmente os dados que a China (e muitos outros Estados) divulga(m) e chegam, por essa via, à OMS e são colocados bases de dados com a já referida da Universidade Johns Hopkins. Todavia, há motivos substantivos para ter muitas dúvidas sobre os números oficiais chineses da covid-19 e sobre o seu sucesso na contenção de novos casos.
Desde inícios de Março que o Governo chinês procura passar internacionalmente a ideia de que é um modelo de eficácia no combate e contenção da covid-19. E que agora usa a sua experiência de forma solidária para ajudar outros como na Itália. Naturalmente que há um bem em si mesmo nessa ajuda, mas isso é apenas parte da história. Na versão oficial, a cidade de Wuhan está já a voltar à normalidade social e económica. Mas não parece ser bem essa a realidade no terreno. Há diversos relatos que sugerem estar a ser engendrada uma ‘realidade’ que faz lembrar o episódio ficcional da “aldeia de Potemkin”.
Nos países democráticos, a imprensa tem uma enorme responsabilidade em tornar pública a verdade que os governos escondem. Mas, neste caso, a generalidade da imprensa europeia e portuguesa começou (mal) por divulgar acriticamente tais números. Não houve uma discussão crítica ou contextualização do problema, nem um mínimo de questionar dos números oficiais divulgados, sem reflexão, como ‘verdade absoluta’.
Quase um mês depois está, nesta altura, (e bem) a questionar o rigor e a confiabilidade das informações chinesas. É bem conhecida, ou deveria ser, a forma como a China controla a informação através de um sofisticado sistema de vigilância na rede e fora dela, e reprime duramente os críticos nos assuntos mais sensíveis politicamente.
Apenas um exemplo recente que não deixa muitas dúvidas. Ren Zhiqiang, um membro do Partido Comunista Chinês que ousou criticar à má-gestão de Xi Jinping na Covid-19 está desaparecido. As suas críticas contrariaram a imagem oficial chinesa de nova “aldeia Potemkin” no combate ao vírus e isso é intolerável. Criticar o próprio governo é um vício punido num regime infalível como o chinês.
5. Sob o nevoeiro do alarme social à volta da covid-19 intensificou-se a confrontação ideológica internacional entre autoritarismo e democracia, entre liberdade e restrição desta em nome do bem-estar e da segurança. Importa não perder de vista que, em última instância, se trata de uma confrontação sobre o tipo de sociedade em queremos viver.
Nos media, as imagens e relatos dos muitos dos casos de infectados pelo vírus e vítimas estão omnipresentes, o que é compreensível nestas circunstâncias dramáticas. Como também estão as imagens dos hospitais e de todos os que têm feito um enorme esforço para controlar a doença e tratar dos infectados que nos comovem. Igualmente presentes estão as medidas de suspensão da vida normal para conter a expansão do vírus.
Mas tudo isso gera a percepção errónea de que o mundo está em “suspenso” e de que a política internacional e a geopolítica pararam. Nada de mais equívoco. À (extrema) direita e à (extrema) esquerda, muitos espreitam já uma oportunidade para se posicionarem no “admirável mundo novo” — bem terrível para quem leu a distopia de Aldous Huxley — que emergirá após a pandemia da covid-19 ser afastada.
Tudo isto ocorre numa Europa que cultiva o cepticismo, onde os europeus são extremamente críticos dos políticos, sejam nacionais ou europeus e da própria democracia liberal. Questionam a transparência e métodos dos seus governos democráticos e desconstroem as suas narrativas. Agora estão aflitos e predispostos a acreditar num salvador para uma pandemia que os aterroriza e deixou semi-paralisados, na economia e sociedade. Seria uma grande ironia histórica se os mesmos europeus, sempre tão críticos e insatisfeitos com tudo, acreditassem piamente que a redenção para a covid-19 foi encontrada numa “aldeia de Potemkin” da China.