Será esta a oportunidade para se acabar de vez com o consumo de animais selvagens na China?

Cientistas chineses pedem que Governo da China trabalhe em conjunto com comunidades para que a proibição do consumo de espécies selvagens seja eficaz.

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Escamas de pangolim são usadas na medicina tradicional chinesa Reuters

Ainda não se tem qualquer certeza quanto à origem da pandemia de covid-19. Há apenas provas de que existe uma ligação entre o SARS-CoV-2 e outros coronavírus encontrados nos morcegos, que o intermediário pode ter sido um pangolim e que o início do surto pode estar relacionado com um mercado na cidade de Wuhan, o epicentro inicial da doença na China, que vendia animais selvagens. Portanto, levanta-se a questão: será esta uma oportunidade para se proibir de vez o consumo de animais selvagens na China?

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Ainda não se tem qualquer certeza quanto à origem da pandemia de covid-19. Há apenas provas de que existe uma ligação entre o SARS-CoV-2 e outros coronavírus encontrados nos morcegos, que o intermediário pode ter sido um pangolim e que o início do surto pode estar relacionado com um mercado na cidade de Wuhan, o epicentro inicial da doença na China, que vendia animais selvagens. Portanto, levanta-se a questão: será esta uma oportunidade para se proibir de vez o consumo de animais selvagens na China?

A 24 de Fevereiro, o Congresso Nacional do Povo da China adoptou legislação que proíbe o consumo de qualquer animal selvagem caçado na natureza ou criado em cativeiro, refere-se num artigo publicado esta semana na revista científica Science. Acrescenta-se ainda que este é um esforço para evitar mais ameaças à saúde pública até que uma lei reformulada sobre a protecção da vida selvagem possa ser posta em prática.

“Argumentamos que a China deve aproveitar esta oportunidade para proibir permanentemente o consumo de espécies selvagens”, considera-se no mesmo artigo assinado por três cientistas da Universidade Normal de Pequim. Relembram que desde a epidemia de SARS em 2003 que foram adoptadas políticas e regulações para controlo de mercados de animais selvagens, mas que a definição de vida selvagem permanece “vaga”, o que causa confusão na sua aplicação. Dizem ainda que as actuais leis que protegem espécies selvagens não diferenciam as que são criadas em cativeiro e as que estão na natureza. E que as penalizações para o consumo e distribuições de espécies selvagens não são suficientemente duras.

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Vendedor de tartarugas num mercado na China ALEKSANDAR PLAVEVSKI/Lusa

“O Congresso Nacional do Povo da China deve rever as leis que protegem as espécies selvagens para assegurar a eficácia da legislação”, apelam, referindo que a definição de vida selvagem deve ser distinta das populações exóticas em cativeiro e as penalizações devem ser mais duras. E terminam: “A China tem de agir para proibir permanentemente o consumo de espécies selvagens para evitar futuros riscos para a saúde pública.”

Num outro artigo na Science sobre o mesmo tema e com cientistas chineses a trabalhar na China e no Reino Unido, aponta-se que a proibição total do consumo de espécies selvagens por si só não será eficaz para se proteger a saúde pública. Os investigadores avisam que poderão existir conflitos entre agricultores e entidades de saúde pública. Ou que a indústria da medicina tradicional chinesa que usa produtos de espécies selvagens, como escamas de pangolim ou fezes de morcego, continuará a procurar esses produtos mesmo se forem totalmente proibidos.

Os cientistas sugerem então que, além de proibir, o Governo chinês deve trabalhar em conjunto com órgãos de protecção da vida selvagem e da saúde e tomar decisões sobre políticas baseadas no conhecimento científico. Sugere-se assim que devem ser criados subsídios e apoios financeiros para facilitar a transformação da indústria agrícola ligada às espécies selvagens, bem como ajudar na transição da produção da medicina tradicional chinesa. “À medida que as mudanças acontecem, o Governo deve dar informação adequada e transparente de forma a encorajar a participação na reforma do sistema de protecção da vida selvagem”, aconselha-se.

“É preciso educar”

Kate Jones (ecóloga da University College de Londres) e um grupo de colegas referem em comunicado que a proibição de mercados com animais selvagens é um assunto “culturalmente sensível” e que, apesar de serem perigosos porque podem potenciar a mistura e surgimento de novos agentes patogénicos que podem chegar ao humano, são o sustento de algumas comunidades no mundo. Por isso, a sua proibição deve envolver as comunidades locais.

Luís Reino também avisa que não basta proibir: “É preciso educar as pessoas [como campanhas para desmistificar as crenças culturais enraizadas]. Se isto não for feito de maneira sustentável – e esquecendo os valores éticos – e não houver alternativas para essas pessoas, pode ser muito pior.” O investigador do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos da Universidade do Porto não tem dúvidas de que é preciso diminuir o comércio de espécies selvagens tanto pela conservação da natureza (pois pode levar a extinções e perda de recursos) como pela segurança da saúde pública.

Já em Fevereiro, num artigo que publicou na Nature com outros investigadores, salientava: “Proibições totais são controversas porque arriscam fomentar comércio ilegal intratável, descontrolável e preços elevados, que é sustentado pelo aumento dos rendimentos e o estatuto social do aumento da classe média [na China].”