Irá a pandemia salvar o SNS?
Esta crise desmente aqueles que andaram décadas a defender a diminuição da aposta ou mesmo o abandono do modelo do Estado-Providência.
Há mesmo ironias da História. A 20 de Março, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, anunciou que, para os Estados-membros da União Europeia fazerem face à crise provocada pela pandemia do covid-19, ia ser activada a cláusula de exclusão do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Fica, assim, temporariamente suspensa a regra do Tratado Orçamental que impõe que o défice de cada país da União Europeia não ultrapasse o tecto de 3% do Produto Interno Bruto.
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Há mesmo ironias da História. A 20 de Março, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, anunciou que, para os Estados-membros da União Europeia fazerem face à crise provocada pela pandemia do covid-19, ia ser activada a cláusula de exclusão do Pacto de Estabilidade e Crescimento. Fica, assim, temporariamente suspensa a regra do Tratado Orçamental que impõe que o défice de cada país da União Europeia não ultrapasse o tecto de 3% do Produto Interno Bruto.
Cinco dias depois, na quarta-feira, o ministro de Estado e das Finanças, Mário Centeno, divulgou oficialmente que, ao contrário da previsão do Governo que apontava para 0,1% de défice, as contas públicas de Portugal fecharam, em 2019, com um superavit de 0,2%, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística.
A novidade tinha já sido avançada, embora sem números, na véspera, pelo primeiro-ministro, António Costa, no debate quinzenal no Parlamento, mas o ministro estava visivelmente satisfeito, ao anunciar o acontecimento histórico que é as contas públicas fecharem o ano de 2019 com um saldo de 404 milhões de euros, o que não acontecia desde 1973. Um resultado positivo a que se juntam 2,2% de crescimento do PIB e a redução da dívida pública para 117,7%.
A ironia da História é que Centeno – e o país – nem pode celebrar o objectivo atingido pela sua gestão orçamental. Como o ministro fez questão de advertir, devido à actual “crise temporária” de “duração indeterminada”, este resultado é “uma defesa” para o facto de o país ir entrar em recessão, pelo que não será cumprido em 2020 o superavit de 0,2% previsto no Orçamento do Estado.
Já na segunda-feira, depois de uma reunião com o Presidente da República, Centeno tinha assumido que o Orçamento do Estado para 2020 – nesse dia promulgado por Marcelo Rebelo de Sousa – teria de ser rectificado por causa da necessidade de o Estado fazer face às consequências da pandemia no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e no tecido económico e social.
Registe-se que, nessas declarações aos jornalistas, finalmente o ministro esclareceu que não está de saída do Governo nem da presidência do Eurogrupo e que está “totalmente focado nas exigências e nas necessidades” destes cargos. Centeno optou mesmo por classificar como especulação as notícias sobre o seu regresso ao Banco de Portugal para ser governador: “Todos, mas todos, devemos gastar as nossas energias apenas focados nessa resposta à crise e não a alimentar folhetins que só interessam àqueles que os desenham.”
É bom que se diga que, se houve especulação e este folhetim durou mais de seis meses, o próprio Centeno tem enormes responsabilidades. Nunca desmentiu as notícias. Pior, alimentou o folhetim na entrevista que deu ao Expresso, em Dezembro.
Apesar de, no actual contexto de expansão da pandemia, o país não ter disponibilidade para festejar a histórica conquista de um superavit de 0,2% em 2019, o facto é que a sua existência, como disse o ministro Centeno, é “uma defesa” fase à crise que se abate sobre o país.
É verdade que, para combater os efeitos da pandemia no SNS e no tecido económico e social, bem como para garantir a posterior retoma, é imprescindível a activação da cláusula de exclusão do Pacto de Estabilidade e Crescimento, anunciada por Ursula von der Leyen. Assim como é decisivo o abandono, pelo BCE, dos limites à compra de dívida dos Estados-membros.
Igualmente crucial será a resolução do impasse criado, quinta-feira, no Conselho Europeu, sobre a emissão de títulos de dívida europeia (“coronabonds”), de modo a que a solidariedade entre Estados-membros pudesse ir mais longe do que a proposta feita, quarta-feira, pelo Eurogrupo, de criar uma linha de crédito, no Mecanismo Europeu de Estabilidade, no valor de 2% do PIB de cada país.
Mas a existência de uma almofada financeira de 404 milhões de euros nas contas do Estado de 2019, por pouco que represente, é dinheiro que pode ser desviado para responder às necessidades das pessoas e das empresas durante e após a crise pandémica. Mas também do SNS.
Após esta experiência, quando o quotidiano voltar à normalidade, é fulcral que muita coisa mude no que diz respeito às prioridades do Estado em relação às opções orçamentais e ao investimento público. E à cabeça dessas escolhas está o investimento no SNS, que desprezado tem sido há três décadas.
Esta crise prova a importância de serviços públicos sólidos e desmente aqueles que andaram décadas a defender a diminuição da aposta ou mesmo o abandono do modelo do Estado-Providência, influenciados pelas teses neoliberais.
O Governo tem sabido gerir a situação, nomeadamente quando adoptou medidas cedo, como o fecho das escolas. Mas, se não fosse a capacidade de resposta do SNS, muito provavelmente as consequências letais da pandemia eram já outras. É por isso que uma das lições fundamentais que há a tirar desta tempestade é a de que é preciso investir a sério no SNS, pois é ele que salva vidas.