“Here we go”. Where?
À medida que os indicadores de letalidade do novo coronavírus iam crescendo exponencialmente à escala global nas últimas semanas, impondo fortes restrições à circulação de bens, pessoas e serviços, perante um cenário generalizado de cancelamento de eventos e competições desportivas, os Jogos Olímpicos foram-se mantendo irredutíveis no seu calendário, resistindo ao senso comum e à crescente onda de contestação na opinião pública, de chefes de Estado e destacadas figuras do mundo do desporto.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
À medida que os indicadores de letalidade do novo coronavírus iam crescendo exponencialmente à escala global nas últimas semanas, impondo fortes restrições à circulação de bens, pessoas e serviços, perante um cenário generalizado de cancelamento de eventos e competições desportivas, os Jogos Olímpicos foram-se mantendo irredutíveis no seu calendário, resistindo ao senso comum e à crescente onda de contestação na opinião pública, de chefes de Estado e destacadas figuras do mundo do desporto.
Alegadamente, o Comité Olímpico Internacional (COI) ia passando sinais em contraciclo com a evolução do vírus, colocando em risco a saúde dos atletas e a reputação de autoridades desportivas e políticas nacionais, a quem exortava que viabilizassem condições de treino, num contexto de enorme risco e ameaça em matéria de saúde pública.
Por inúmeras razões, o tal senso comum ditava que nestes dias seria ultrajante a ousadia de questionar se a chama olímpica se iria acender a 24 de Julho em Tóquio, num contexto onde milhares de vidas colapsam a cada dia. Os Jogos já teriam sido adiados, apenas o COI ainda não o sabia… E com o tempo teria o mesmo destino de tantos outros eventos desportivos.
No total, mais de 250 mil de pessoas de todo o mundo são acreditadas nos Jogos Olímpicos. Não só os 11 mil atletas, mas também treinadores, médicos, juízes, oficiais, membros do COI, presidentes de federações, patrocinadores, convidados e comunicação social, aos quais acrescem voluntários, forças de segurança, técnicos e um arsenal de meios e pessoas que trabalham no apoio àqueles que participam nos Jogos. Tudo isto a ser mobilizado perante uma gigantesca pandemia, e incontrolável fonte de perigo.
Pois, é precisamente “tudo isto” que torna os Jogos o maior evento desportivo à escala mundial, sem qualquer nível de complexidade ou escala comparável, o que, em parte, condiciona decisões céleres perante a evidência de urgência de uma resposta célere. Decisões que o Movimento Olímpico, como tantos outros Estados ou organizações mundiais, não tem sabido ou não tem conseguido tomar em tempo útil, tanto mais quando, no caso dos Jogos, a Organização Mundial de Saúde era parte integrante do grupo de trabalho criado para responder a esta crise sem precedentes.
Presumir que mudar os Jogos Olímpicos em 12 meses se resume a uma questão financeira e logística configura laborar num tropismo cândido sobre um evento que é o diapasão da máquina gigantesca que o Movimento Olímpico representa e de grande parte da arquitectura do desporto mundial.
Vejamos porquê, a começar na decisão de adiamento dos Jogos tomada na passada terça-feira. O COI, enquanto líder do Movimento Olímpico, o Comité Organizador dos Jogos Olímpicos de Tóquio e a autoridade de governo da cidade são partes no contrato da cidade anfitriã dos Jogos, comummente designado por host city contract, o qual estabelece um amplo leque de obrigações, cujo cancelamento, não sendo por mútuo acordo, coloca a parte que o faz perante um gigantesco volume de indemnizações na ordem dos biliões de dólares, para além de avultados danos de reputação junto de patrocinadores, fornecedores, seguradoras e detentores de direitos televisivos, numa previsível e longa litigância.
Num cenário não previsto de uma epidemia global, o adiamento anunciado pelo primeiro-ministro Abe, em mútuo acordo com o COI, ainda que possa dar lugar a avultadas indemnizações, bem como à renegociação e anulação de centenas de contratos com aqueles parceiros, minimiza os danos.
São estes alguns dos desafios que o grupo de trabalho “Here we go” liderado por John Coates tem pela frente na reorganização dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 em... 2021.
Muitas das análises e comentários, mais ou menos especializados, que foram surgindo nestes dias terminavam aqui... Mas há mais. Muito mais.
Primeiro, a sustentabilidade da vasta maioria das 28 federações desportivas internacionais permanentes no Programa Olímpico (mais as cinco convidadas para Tóquio) depende da distribuição de 590 milhões de dólares de receitas dos Jogos, com inevitável impacto ao nível das federações continentais e nacionais, e bem assim dos eventos que organizam. Muitas destas federações internacionais simplesmente não conseguem subsistir caso o COI não receba os 3 biliões de dólares previstos em direitos de transmissão e patrocínios.
Depois, os Comités Olímpicos, Federações Nacionais e Atletas dependem na sua preparação para os Jogos destas receitas, distribuídas através dos programas da Solidariedade Olímpica, alinhados com a data dos Jogos (2020), com especial impacto nos países em desenvolvimento, onde escasseiam outras fontes de receita, mas também em atletas que por força da suspensão das competições vêem os seus prémios diminuírem e patrocínios em crise.
Não menos importante e complexa é a redefinição do calendário competitivo internacional, em particular face à imprevisibilidade de evolução da covid-19, nomeadamente nas principais modalidades olímpicas (como a natação e o atletismo, com Campeonatos do Mundo previstos para o Verão de 2021) e naquelas onde estão mais vagas de qualificação ainda em aberto, pois apenas 57% dos cerca de 11 mil atletas se encontram qualificados para Tóquio.
Também os mandatos do COI, dos Comités Olímpicos Nacionais e de muitas organizações desportivas internacionais e nacionais, como é o caso de Portugal, se encontram alinhados pela data dos Jogos e pelos ciclos olímpicos, os quais constituem ainda um referencial de programação desportiva, prestação de contas e apoio de políticas públicas.
É esta cadeia, aqui brevemente resumida, que está em causa com o adiamento daquele que é o seu veio de transmissão - os Jogos Olímpicos –, que é esperado se reposicione, quando em causa está o bem inalienável da vida.
Mas aquilo que as palavras traduzem nem sempre os actos acompanham, e não se pode olvidar que os dois pilares do Movimento Olímpico – as Federações Internacionais e os Comités Olímpicos Nacionais – caucionaram um generalizado “full support” às decisões do COI, com poucas excepções onde pontuam dois países de língua portuguesa.
O mundo que iremos encontrar após esta crise não será o mesmo, como não foi aquele que o Movimento Olímpico encontrou depois da crise de Salt Lake City, quando lançou uma ampla campanha designada “Celebrar a Humanidade”, a qual, aparentemente, foi esquecida ao longo desta história e agora importa a todo este Movimento conseguir reabilitar, pois sai daqui fortemente abalado. Desde logo a eventual diversidade de candidaturas e o processo de escolha das próximas edições dos Jogos pós-coronavírus.
Momentos excepcionais, mais do que tacticismos políticos ao sabor das circunstâncias, exigem lideranças excepcionais que saibam, sem receios, e em qualquer contexto, afirmar com firmeza as suas posições, tendo presente que nos princípios de trabalho do Movimento Olímpico de “unidade na diversidade” a pluralidade tem de ser respeitada no mesmo plano da solidariedade, onde a unidade não se confunde com unanimismo.